Memórias de um Caracol
Excêntrico universo
Por Vitor Velloso
Mostra de Cinema de São Paulo 2024
Primeiramente, gostaria de fazer aqui uma mea culpa, pois nunca assisti a “Mary e Max – Uma Amizade Diferente” (2009) – ainda que tenha crítica neste site, então eu não tinha expectativa com “Memórias de um Caracol”. Por essa razão, diferentemente de uma parcela do público, não houve decepção alguma. Com esse pedido de desculpas pela minha falha cinéfila, prossigamos.
A animação é uma interessante forma de expressão, especialmente pela capacidade de criar universos inteiros, seja através de traços realistas ou da deformação completa da realidade. Nesse sentido, “Memórias de um Caracol”, dirigido por Adam Elliot, consegue transformar a estranheza de seus personagens em um universo sólido, que constantemente flerta com algum grau de horror e de tristeza profunda. Assim, mesmo em momentos de felicidade, é possível notar a construção de uma estética bizarra, adotada para explicitar o caráter excêntrico desse universo, ainda que, em determinados momentos, esse padrão beire um didatismo quase excessivo, com repetições de imagens e algumas alegorias que já foram estabelecidas anteriormente ao longo do filme, sem necessidade de retomar um quadro ou um conceito mencionado pela protagonista.
De alguma forma, esse é o grande trunfo do projeto: trabalhar com as particularidades de seus personagens, entre arquétipos e eufemismos para situações desastrosas, enquanto articula as sutilezas das temáticas abordadas, sem perder o peso dramático do desenvolvimento. Porém, há uma enorme dificuldade em estabelecer uma cadência e um ritmo minimamente agradáveis. Isso prejudica muito uma experiência que possui tantos detalhes em seus personagens, pois, em determinado momento, é possível divagar de forma drástica, fazendo com que o espectador perca uma série de minúcias dessa construção dos protagonistas. Contudo, esse é um efeito esperado em um projeto que se arrasta de forma tão vagarosa por narrações em off que refletem constantemente sobre as situações vividas. Claro, há momentos em que a narração é essencial e ajuda a contar a história de forma eficiente, às vezes contradizendo relatos de alguns personagens, mas, em outras, apenas descrevendo tudo o que estamos assistindo de forma mimética.
“Memórias de um Caracol” transita entre um número realmente alto de temáticas. Por essa razão, há uma série de discussões que se tornam superficiais, pois é inviável trabalhar com todas elas. Assim, é possível notar disparidades em cada sequência, com algumas recebendo um destaque maior do que outras. Um exemplo disso é o segmento em que acompanhamos a família do irmão, Gilbert (Kodi Smit-McPhee), de fanáticos religiosos e homofóbicos, que cultuam uma maçã. Além de carregar uma longa reflexão dramática e social, o caráter apologético dos personagens, expresso em simbolismos e atitudes reacionárias, realmente permite ao espectador enxergar diversas representações na forma como essa família é retratada, incluindo paralelos com o contexto brasileiro, especialmente diante das questões que têm ocorrido no país. Por outro lado, a dinâmica entre Grace (Sarah Snook) e Pinky (Jacki Weaver), apesar de tocante, tem um ritmo mais lento, criando uma pequena disritmia entre esses dois blocos, que pode ser sentida de forma sensível.
De toda forma, a eficiência da animação em traduzir as angústias, decepções e o terror (como na família de Gilbert e na descoberta que Grace faz sobre seu marido) é realmente impressionante e consegue proporcionar uma imersão profunda nesse universo desolado, em uma decadência moral e social progressiva, com suas sutilezas e momentos felizes. Ainda assim, as quedas de ritmo ao longo do projeto são capazes de esfriar essa sensação transmitida pelo filme, além de levar o espectador à exaustão, para o bem e para o mal.
Por fim, “Memórias de um Caracol” é um longa que realmente possui méritos técnicos invejáveis e uma capacidade de construção estética ímpar. No entanto, para além da variação rítmica, há uma necessidade didática que incomoda em diversas sequências, cansando pela sua repetição e insistência. Os momentos finais são realmente belos e aliviam a experiência carregada do restante do projeto, ainda que insistam em algumas saídas cômicas e dramáticas recicladas, além de recorrerem a certos clichês estruturais que podem fazer alguns espectadores torcerem o nariz. O filme se destaca pela estética peculiar e pela profundidade emocional de sua narrativa, mas esbarra em problemas de ritmo e didatismo, com uma história melancólica, sutil e alguma superação, as pequenas prisões de cada pessoa vão se revelando um dos maiores pontos de interesse de um roteiro menos articulado que poderia, ainda com sua eficiência.