Medida Provisória
Elos entre os tempos
Por Vitor Velloso
Durante o Festival do Rio 2021
O novo filme dirigido por Lázaro Ramos venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio 2021 com devidos méritos e provavelmente iria angariar algum troféu no Júri Popular. “Medida Provisória” arrancou aplausos de um lotado Estação Net Botafogo (Sala 1) por longos minutos enquanto Elza Soares ecoava pela sala. Talvez a grande empolgação causada pela obra possa esconder algumas questões mais frágeis do longa, contudo o vigor explosivo que levou as pessoas a clamarem Lázaro na sessão não é tão distinto daquele que fez “Bacurau” (2019) ser ovacionado há algum tempo. Na verdade, o que alimenta essas reações diz mais sobre o contexto político de suas exibições que propriamente sobre as obras.
Mas o que faz “Medida Provisória” ser particularmente marcante no presente ano, está longe de ser a experiência coletiva da sala de cinema e as reações mais calorosas. Lázaro consegue construir uma ficção científica que não se prende à conceitos importados ou padronizações, pelo contrário, parte de uma distopia tupiniquim onde o governo brasileiro eleito de caráter proto-fascista explicita seu ódio aos negros, passando a chamá-los de “melanina acentuada” e conseguindo aprovar uma MP que manda todos os assim chamados “de volta para a África”. Está claro que algumas semelhanças com a sociedade brasileira contemporânea, tanto na figura odiosa do Estado quanto na personagem de Renata Sorrah, é apenas uma mera coincidência. De toda forma, esse universo desenvolvido pelo filme se passa em um futuro não tão distante, com todas as características do Brasil que conhecemos, o que já distingue de algumas outras tentativas utópicas e distópicas recentes do cinema brasileiro.
De toda forma, o grande elenco traz à tona uma ligação desse possível futuro com o nosso atual presente (além das inúmeras referências a personagens históricos como Luiz Gama, Capitu…), já que conta com diversos atores e artistas que contribuem drasticamente para a discussão social no país: Lázaro (na direção), Emicida, Taís Araújo, Seu Jorge etc. A estrutura narrativa da obra segue esse imbróglio eugenista em duas histórias distintas, a de Antônio (Enoch) e André (Seu Jorge), e o foco da resistência que Capitu (Taís) encontra no meio do caos, o Afrobunker, de “Medida Provisória” . Esse recorte acaba sendo costurado por uma certa necessidade de investir no drama particular de seus personagens para conseguir uma ligação maior com o público. Não funciona na íntegra e acaba cedendo a alguns clichês particularmente desconcertantes, especialmente na reta final, mas permite que o espectador possa acompanhar dois retratos desse mesmo universo. É onde a montagem precisa saber dosar as transições, sem que o diálogo sirva de muleta para tal. E o trabalho de Diana Vasconcellos não vacila nesse sentido, sendo bastante eficaz em polarizar seus acontecimentos sem distanciar a própria realidade do filme. Neste mesmo caminho, a fotografia de Adrian Teijido é hábil na articulação dessas perspectivas polarizadas, seja na construção de uma ambientação sem atravessamentos diretos, como no apartamento, ou nos altos contrastes que marcam as opiniões heterogêneas, na cena do julgamento.
Porém, boa parte do desenvolvimento de “Medida Provisória” em torno do racismo da sociedade brasileira e das atitudes desse Estado corrupto e racista, a base da discussão é moral, mantendo-se em um jogo de projeções e representações que não vai no cerne de suas questões. Isso gera uma contrapartida que tal como “Bacurau”, o ativismo é medido pela reação imediata ao estímulo e ao conteúdo expositivo das ações de seus personagens, ou seja, esses reflexos não refletem exatamente uma resolução das problemáticas, mas conseguem denunciar em um grau da ordem vigente. E como de costume, o povo brasileiro costuma ser reativo à passividade e à homogeneidade, explicando situações mais fervorosas como essa. Agora, uma cena pode gerar algum desconforto nas alas mais conscientes, a dualidade que explicita o suposto “extremismo” de ambos os lados, equalizando a morte de dois personagens em lugares distintos. Esse trecho pode gerar um debate pouco amigável em um futuro não tão distante.