Qual o valor de uma catarse?
Por Filippo Pitanga
Durante o Festival Cine Ceará 2019
O longa-metragem “Maria do Caritó” de João Paulo Jabur foi exibido em caráter hors concours no 29º Cine Ceará, em sua estreia mundial, como parte da homenagem a Lília Cabral, que recebeu o Troféu Eusélio de Oliveira por sua carreira das mãos do ator José Loreto (com quem contracenou na recente novela “O Sétimo Guardião”). Não à toa, talvez por carisma da atriz ou pela receita de sucesso devido à experiência com a longeva montagem da peça homônima que deu origem ao filme, a exibição teve a recepção mais calorosa do Festival até agora. Contou com interação e imersão totais de público, que cantava e batia palmas junto com a inocência retratada na trama, com a casa cheia em sua totalidade de 1.050 lugares da capacidade do mítico e histórico Cine São Luiz em Fortaleza. Diante deste fato relevante, o trabalho deste crítico que vos escreve precisa levantar uma questão importante: qual o valor de uma catarse?
É nítido que se operou uma catarse coletiva dentro daquela sala de cinema, e este tipo de responsividade realmente não tem preço. Mas até onde isto se opera pela identificação com a cultura regionalista e lúdica de Brasis que não costumam ser mostrados na Tela Grande, a partir da história de uma cidadezinha que desejar canonizar como santa sua famosa cidadã virgem de 50 anos que nunca teve a chance de viver fora daquela bolha, ou simplesmente por técnica e linguagem cinematográfica acertadas? Especialmente em se falando de produções que alcancem o grande circuito comercial como esta “Maria do Caritó”.
De fato, a adaptação da peça homônima do dramaturgo pernambucano Newton Moreno, com a qual Lília já fazia sucesso nos palcos, demonstra as diferenças no rendimento da grande atriz em atuar na peça e no filme, num contraste entre a expansão do palco e a contenção da tela. Além de que não podemos deixar de falar sobre a possibilidade de acrescentar camadas dramáticas para uma personagem cômica a partir da linguagem de cinema, até mesmo uma pitada de melancolia (algo à la Buster Keaton, que fazia um humor bastante corporal, mas sem nunca sorrir, sempre com uma face tristonha), visto que a possibilidade de operar com a câmera opções de closes e planos-detalhe não existe da mesma forma no teatro.
Ainda assim, a linguagem televisiva das origens de João Paulo Jabur, com sólida carreira como diretor de telenovelas e seriados, não pode ser negada na fusão advinda do teatro para o cinema… O próprio diretor chegar a ter assumido em entrevista inúmeras referências clássicas da sétima arte para fazer o filme, como Federico Fellini com filmes como “La Strada” e “As Noites de Cabíria”, onde vemos a técnica de atuação da palhaça triste interpretada em ambos por Giulietta Masina… Ou como filmes brasileiros do naipe de “Bye Bye Brasil” de Cacá Diegues, pela tradição de teatro mambembe, e “O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro” de Guel Arraes pelo non sense fabular e de cordel.
Mas o fato é que essas ideias ainda assim estão contidas numa roupagem que quase parece estúdio de novela, mesmo sendo nítido se tratar de uma cidade real do interior. Ou seja, a técnica de cenografia apreendida na TV é tão boa e predominante, que até uma cidade real se torna um pouco artificial, retirando algumas possibilidades de identificação popular regional. Até na trama a cidade se apresenta como fictícia, um artifício do roteiro para que qualquer espectador de qualquer lugar do país pudesse se sentir representado… Porém a ausência de arquétipos representativos mais marcantes também faz com que se aliene de certa forma a propriedade cultural que se poderia assumir ali.
O tom lúdico deveria compensar isso, mas também opera a não dar substrato para uma trama que já parte de uma premissa que pode ser considerada anacrônica. Não que o texto original de Newton deixe de conter suas boas sagacidades, mas o que funciona no teatro pode mudar de sentido na tela grande, e o significado de “Maria do Caritó”, ou seja, aquela mulher que não se casa e permanece “virgem” ou “intocada” na prateleira onde ficam as coisas esquecidas (caritó quer dizer isso, prateleira do esquecimento), poderia deixar de se comunicar com o público atual à luz das novas ondas feministas e de empoderamento feminino.
Não se está dizendo com isso aqui que uma personagem que alcançasse os 50 anos como virgem não poderia ser por escolha própria, e não por imposição de terceiros, mas a Maria da peça e do filme ainda quer funcionar numa chave de crítica de não se ter vivido a vida de verdade, pela prisão social ao seu redor. E isto se sobressai mais pela interpretação de Lília do que necessariamente pelo desenrolar da trama rocambolesca que vai envolver clarividência e a possibilidade de um homem que se apaixonaria por ela…mas que será apenas mais um a tomar vantagem e se aproveitar da situação.
São muitos os que tentam ganhar vantagem, representando arquétipos institucionais presentes em nossa sociedade, como a Igreja, a política, a polícia, ou mesmo a instituição familiar com pais castrativos que não sabem de fato o que é melhor para seus filhos às vezes, e só sabem prender para tentar impedir o risco de a pessoa se machucar aprendendo com os próprios erros. E esse contexto politizado até pode ressoar ecos na sociedade atual, como com o crescente conservadorismo que anda lutando contra a cultura e a educação na atualidade, como se essas forças todas não precisassem caminhar juntas na mesma direção para o bem do povo… Mas o fato é que o tom farsesco e caricatural às vezes em exagero pode mascarar essa crítica, que fica por demasiado sutil para se tornar relevante.
Vale destacar a atuação do elenco, especialmente aqueles que trazem outras vivências e experiências interdisciplinares, como a atriz Kelzi Ecard (em seu primeiro longa-metragem, mas muito experiente em peças como “Por amor ao Mundo, um encontro com Hannah Arendt”, “Incêndios” e “Tom na Fazenda”), evocando a força do teatro para interpretar a única melhor amiga da personagem-título…; Ou mesmo os artistas com Fernando Neves (que já participava da montagem original de “Maria do Caritó”, interpretando vários personagens) e Fernando Sampaio (parceiro do saudoso Domingos Montagner em obras como “Pagliacci”), ambos com tradições circenses que agregam muito ao filme.
Ou mesmo a técnica de Lília Cabral, consagrada e renomada, que traz a influência da memória da música na criação da dinâmica de corpo em cena, bem como da força política de levar o teatro ao cinema e alcançar todas as regiões do Brasil com a possibilidade de catarse e reflexão. E se isto puder ser alcançado…já é um bom começo por trás da boa e velha catarse como fio condutor.