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Mães Paralelas

O fardo das mulheres absurdas

Por Bernardo Castro

Festival do Rio 2021

Mães Paralelas

“Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento consome, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo.” – O mito de Sísifo, Albert Camus.

Dentre as mais diversas correntes filosóficas e axiomas, a acepção de ciclicidade da história é um ponto de convergência entre elas. Para os budistas, o ato de romper com o ciclo de tragédias oriundo da condição humana abarca a transcendência do plano físico e, por conseguinte, a elevação espiritual conhecida como Nirvana. Para Nietzsche, entretanto, a evolução dá-se ao aceitar a sina estar preso à eterna repetição. Acatando ou não, estamos todos presos ao abjeto suplício destinado à Sísifo. A partir desse axioma, o cineasta Pedro Almodóvar concebe seu recém-lançado filme “Mães Paralelas”, que nada mais é do que um filme sobre ciclos, mesmo que não se restrinja apenas a esta ideia, tendo em consideração as diversas camadas de discussão e crítica social abrangidas durante suas duas horas de duração. A cena final, inclusive, ratifica a tese citada. Nela, todos os personagens são horizontalmente dispostos no lugar dos cadáveres dos homens da aldeia, mortos durante a Guerra Civil Espanhola – um vislumbre do ciclo voltando ao ponto de partida, servindo de dura crítica para o negacionismo da elite espanhola, que nega as veias abertas da Espanha pós-franquista.

Em suas camadas menos herméticas ao público, “Mães Paralelas” conta as histórias cruzadas de Janis, vivida por Penélope Cruz e Ana, interpretada por Milena Smit, duas mulheres com perspectivas e trajetórias completamente diferente que, por ironia do destino, encontram-se na maternidade e são unidas pelo destino. Mais do que o destino, elas são unidas pelos grilhões que as mantém presas ao ciclo da vida enquanto veem o passado sendo repetido. Janis, como sua mãe e sua avó, mesmo que por motivos diferentes, é forçada pelas circunstâncias a criar a sua filha como mãe solo. Já Ana, que cresce em um ambiente insalubre, é constantemente tolhida pelos seus progenitores e tratada como um objeto que, quando só é bem quista quando convém. Vê-se, então, a objetificação da mulher em suas diversas facetas. Enquanto Janis é tratada como um objeto para satisfazer os desejos de Arturo, uma vez que este se recusa a assumir qualquer compromisso com ela, Ana é, como dito anteriormente, passada de mão em mão e rejeitada tanto pelo pai quanto pela mãe. É interessante como o diretor constrói as relações entre as personagens femininas. Elas não são pintadas sob um panorama maniqueísta e tem o tempo de tela suficiente para que sejam desenvolvidas, não as absolvendo de seus pecados, mas buscando a compreensão do telespectador comum.

Na segunda de “Mães Paralelas”, ambas as protagonistas efetivamente desenvolvem um interesse amoroso correspondido. Para o observador mais desatento, o acontecimento em questão é completamente arbitrário. Porém, o bom trabalho de direção de atores é traduzido na sutileza com a qual os olhares são direcionados e apontam para o catártico momento em que o interesse é consumado. É evidente que nada disso seria possível sem as atuações magistrais, com destaque para a veterana Penélope Cruz, figurinha carimbada na filmografia do espanhol. Almodóvar brilhantemente move o até então inextrincável olhar da sociedade que, em seu status quo, não enxergariam as protagonistas do filme. Ele dá enfoque a mulheres até então situadas em segundo plano e leva suas histórias para o primeiro plano, em contato direto com o espectador. O realizador, como mostrado não só nesse longa, mas em suas obras pregressas, sabe muito bem trabalhar a temática do lugar da mulher na nossa sociedade, tecendo críticas cirúrgicas à misoginia e a estrutura patriarcal na qual ela se configura. Outra questão que serve de guia para a trama é o dilema moral que a protagonista. Uma vez descoberta a troca de laços sanguíneos entre ela e sua filha, diferentemente do que poderia se esperar, ela decide levar o segredo até o túmulo. Há um paralelo interessante que pode ser feito com a escavação. A história recusa a se calar, como diz a paráfrase de Eduardo Galeano antes dos créditos. No fim, o passado tem que ser exumado para que possa se seguir em frente, mesmo que possa doer arcar com as consequências.

4 Nota do Crítico 5 1

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