Mademoiselle Vingança
A Madame e o Marquês
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2018
“Mademoiselle Vingança”, de 2018, é desses filmes que jazem meio escondidos no catálogo da Netflix, o gigante do streaming que amealhou uma lista caudalosa de títulos, verdadeiro rolo compressor do audiovisual. O título é enganador, formulado com o intuito de incluir a fita num subgênero contumaz nos dias de hoje – filmes sobre vingança feminina. Sim, o enredo é a vingança de Madame de La Pommeraye (Cécile de France, em atuação soberba) em cima do libertino Marquês des Arcis (Edouard Baer, igualmente eficiente). Mas com uma diferença radical: ao contrário da grande maioria das produções do subgênero, que privilegiam um voyerismo serial de violência, começando com espalhafatos sádicos masculinos e terminando com surtos vingativos femininos, também sádicos, no filme de Emmanuel Mouret o terreno onde se dá a performance vingadora é, sobretudo, o terreno linguístico – a língua francesa, em suma, com toda sua carga sutil de ironia, aberta ou dissimulada, fingimentos e constrangimentos.
Trata-se de uma adaptação de um clássico literário do século 18, do (brilhante) filósofo e escritor Denis Diderot – não do livro em sua unidade, como é corriqueiro, mas de um trecho do livro, uma história contada aos dois protagonistas no surpreendente e cativante “Jacques, o Fatalista e seu amo”, texto que Diderot escreveu mais para o final da vida e que só foi publicado integralmente após a sua morte, em 1784. Um romance filosófico, cheio de insinuações morais e provocantes, que se constrói a partir do diálogo entre Jacques, seu amo e… o narrador (no Brasil, um século mais tarde, Machado de Assis iria aventurar-se em caminhos análogos). Pois… lá pelas tantas Jacques e seu amo estão viajando e param na pousada Grand Cerf. No dia seguinte à sua chegada, o tempo está péssimo e os dois são obrigados a esperar: a anfitriã do Grand Cerf aproveita para contar-lhes as desventuras do Marquês des Arcis, o qual também está hospedado na pousada, desventuras essas que são, helás, o cerne da vingança de Madame de La Pommeraye.
O roteiro de “Mademoiselle Vingança” retoma frases inteiras do original, com a sonoridade especial do francês, àquela altura o idioma por excelência das classes cultas europeias, da Rússia às Américas. A direção de Mouret optou pela sobriedade, planos gerais e longos, figurinos e cenários impecáveis – e projetando em primeiro plano, numa espécie de close acústico, os artifícios da língua e os movimentos de corpo dos atores/atrizes: cada palavra remete a um significado moral, que é enfatizado por gestos; cada fala, enfim, tudo aquilo que é fingido, consciente ou inconscientemente, instaura a distância entre palavras e comportamentos.
O enredo: nosso Marquês des Arcis, celerado confesso, apaixonou-se por Madame de la Pommeraye, uma viúva rica que tinha desistido das agruras do amor. Ela rejeitou os avanços por vários meses, mas acabou por ceder. O romance teve vida curta, pois o Marquês, como se previa, se cansa daquele afeto e provê cada vez menos atenção à viúva. Orgulhosa e vingativa, Madame de la Pommeraye arquiteta um plano temível: apresenta ao insaciável Marquês uma bela jovem de rosto angelical, Mademoiselle d’Aisnon (Alice Isaaz) – alguém que caíra na pobreza e foi prostituída pela mãe. A perversidade foi transformar mãe e filha em devotas religiosas, fato que aguçou ainda mais o Marquês, que se apaixona perdidamente pela moça.
A esperteza de “Mademoiselle Vingança”, que advém do livro de Diderot, é trabalhar a narrativa de modo equilibrado com todos os seus personagens, procurando desvelar as contradições de cada um, mas nunca excessivamente severa com eles. O Marquês sofre com a rejeição inédita de seus desejos, algo impensável para ele: Madame de La Pommeraye é movida pelo egoísmo da vingança, e atua em nome do gênero feminino, pretendendo não apenas punir o Marquês, mas também educar a inconsistência dos homens. A contemporaneidade de Diderot – que escreveu o texto às vésperas da Revolução Francesa de 1789, portanto a um passo de uma era radical de transformações políticas e sociais – é flagrante: os personagens, as situações, criteriosamente reencenadas no filme, terminam por repercutir nas relações entre os sexos do século 21.
Lendo (e vendo) uma obra de Diderot, entramos de cabeça num tempo onde as ligações amorosas parecem curvar-se aos desígnios sutis e às vezes tortuosos da filosofia moral. Mas que persistem: cinema e literatura, na dosagem certa.