M8 – Quando a Morte Socorre a Vida
Quando os mortos exigem visibilidade humana
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
Exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2019, o mais recente longa-metragem de Jeferson De (de “Bróder“), “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, é um filme-discurso desenvolvido pela narrativa do cinema de gênero. Construir o sensorial para buscar a sensibilização. Estimular a mudança de mentalidade contra o racismo estrutural, enraizado nos brancos, que acontece por mínimos atos (e/ou pensamentos), condicionados por repetições padronizadas. Aqui, a morte volta à vida para pedir ajuda, como uma representação esperançosa da justiça, e, não apenas importância e reconhecimento, mas visibilidade aos “indigentes”.
“M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, baseado no livro homônimo de Salomão Polakiewicz, é também uma metáfora de uma aula de anatomia (de um curso de Medicina), porque estuda corpos, mostrando que fisicamente todos são iguais. Contudo, é o empírico que desvirtua o olhar, que faz com que o professor seja racista, influenciando outros alunos. É uma bola de neve. Neste caso, cadáveres de pessoas pretas para estudo e aulas interrompidas, evocando Leonardo da Vinci (“o da Monalisa”). Ao abordar a temática, é quase inevitável não se utilizar de gatilhos comuns característicos do preconceito. Dessa forma, o roteiro precisou potencializar situações de confronto racial. Os negros sendo apagados e deixado de lado pelos benefícios da supremacia dos brancos. “Você não trabalha aqui na faculdade?”, debocha-se, entre uma senhora intolerante e manifestação pela janela do ônibus. Porém, ao elevar a passionalidade do discurso, o tom narrativo soa como se fosse um grito, uma catarse que precisa ser despejada e que encontra embasamento na própria condução crítica do filme, gerando a sensação de amadorismo em uma construção cênica quase caseira, com interpretações mais afoitas.
O longa-metragem não para por aí. É preciso, como uma urgência latente, pulsante e engasgada, não só embarcar “de cabeça”, mas também expor todas as mazelas sociais sofridas pelos negros. Marielle Franco está pintada no muro. A “casa de rico” (com música clássica, Kant e camarão de um “dono humanista legal”) constrasta, oprime e ofende ao menos favorecido, que necessita estudar mais e consegue ser o melhor por mérito próprio, causando nos “esbanjadores” ainda mais raiva. Sim, a mãe do protagonista trabalha na universidade. Já no Centro, mães lutam pelos filhos. Sim, de novo, Jeferson De, já considerado nosso Spike Lee brasileiro-tupiniquim, quer listar todos os problemas de nosso mundo em uma única obra. Ingenuidade ou aproveitando a chance?
Em “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, os pesadelos transformam-se em experiências surrealistas que encontram o realismo inconsciente da verdade, quando fragmentos sonhados indicam premonições em flash de um terreiro de umbanda (“acesso aos mortos”), por exemplo. Assim como em “Morto Não Fala”, de Dennison Ramalho, este adentra na fantasia realista do horror psicológico, desnorteando o espectador entre loucura e terror (pelas imagens religiosas). É também um filme-arqueologia, que investiga a origem-história desses corpos sem “memória” e sem “vida” prévia. E um “escolhido” que “vive com os mortos” (“sai do ar” à moda de “O Sexto sentido”, de M. Night Shyamalan – “Eu vejo gente morta”) poderá salvar seu povo, visto que as culturas africanas acreditam que “se salvar uma só alma, todas serão salvas”. “Até a morte é brusca”, diz-se à procura da “educação cultural”, entre novas teorias e questões, como a festa gay e o “trabalho rotineiro da polícia” (um “negro racista” com olhares cúmplices para os brancos), a “máxima de que branco sempre consegue” e sexo na penumbra, em uma elegante e poética fotografia. Como se impor no meio de tanta violência hostil? “Difícil para todo mundo”, lamenta-se, imbuído por “anos de repressão”.
E mais vez, o roteiro segue pela facilitação, resumindo cenas do que aconteceu até agora para “lembrar” o público, trazendo o estilo narrativo e didático da novela. Mas é uma cena que marca todo o filme (chegou a ser aplaudida de pé durante a exibição de estreia no festival, entre negros e brancos), a da personagem de Mariana Nunes, a mãe, que grita para o filho Maurício (o ator Juan Paiva): “Sou uma mulher preta falando, não me interrompa” (complementado por seu olhar final no silêncio), tudo para que ele “não desista e abandone a cabeça”, ainda que a raiva no olho peça urgência de luta e revolta. “Seu caminho é você que escolhe. O mundo dos vivos dá trabalho”, diz-se. Para concluir, “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida” é um filme de representatividade, visto que a produção é quase toda de pessoas pretas: atores, direção e parte técnica, de discurso social, que pretere conteúdo à forma, mas que quando inflama demais o pessoal, o contexto acaba reverberando uma ambiência teatralizada, em núcleos-esquetes de problematização, que pontuam mais que discutem. Falta ser definido se a condução é pelo popular ou pela arte.