M – O Filho do Século
O sobre-homem ou além-do-homem
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2024
Nos primeiros trechos do diário de guerra de Mussolini, publicados no seu jornal “Il Popolo d’Italia”, ele se descreveu como um Übermensch nietzschiano, um sobre-homem ou além-do-homem. Dos diários não constam passagens de brilho ou heroísmo, em 1917 uma bomba explodiu acidentalmente quando recebia instruções para operar um canhão, ferindo seu rosto, ombro e axila direita. Foi para licença de recuperação, e desmobilizado. Ao contrário de Hitler, que também lutou na 1ª guerra mundial, o italiano não gostava da vida e disciplina militar. Em comum, ambos liam Nietzsche nas trincheiras.
O trecho não consta da potente série “M – O Filho do Século”, oito capítulos que acompanham a ascensão de Mussolini no poder, entre 1919 e 1925. Mais precisamente, entre o dia em que a Fasci Italiani di Combattimento – ou seja, o fascismo – foi fundada, até o discurso de Mussolini no Parlamento, em janeiro de 1925, que estabeleceu oficialmente a ditadura fascista na Itália. Orbitando em torno de dois eixos narrativos, as peripécias e artimanhas patéticas do líder fascista, por um lado, e o uso da violência irrefreável das milícias que agiam sob sua inspiração, por outro, intimidando quem ousasse atravessar o caminho da “glória” – socialistas, camponeses, intelectuais, operários, indiscriminadamente.
Dirigida pelo inglês Joe Wright – de “O Destino de Uma Nação”, sobre Winston Churchill – a série incorpora a grandiloquência bufônica que associamos ao personagem, com imagens que atordoam nossos sentidos, uma transgressão atrás da outra, planos gerais de ambientes luxuosos com atos de violência editados furiosamente – exatamente como as milícias fascistas faziam, ou ainda, exatamente como o próprio fascismo fazia. “M – O Filho do Século” trata de um período turbulento cem anos atrás, mas evidentemente a remissão para o presente é incontornável: a retórica populista agressiva e facciosa do Presidente Trump, para citar o mais óbvio, vai nessa direção, sem disfarces ou hesitações. Imprevisibilidade, divisionismo, uso da máquina estatal em proveito próprio e mesmo apoio tácito a milícias desordeiras são atributos que Mussolini se jactou em sua ascensão.
Para conectar o espectador com o contemporâneo, Wright lançou mão de ângulos holandeses desorientadores, closes em ângulos baixos e todo tipo de enquadramento não convencional. E mais: a trilha sonora é de Tom Rowlands, do duo techno Chemical Brothers, que sugere um ritmo pulsante que nossos ouvidos, bem ou mal, associam imediatamente ao século 21. O frenesi de alguns momentos da edição, outra marca vertiginosa, funciona também como uma ilustração audiovisual dos poemas do futurista Marinetti, um prócer da literatura naqueles tempos que flertava com o fascismo (depois se afastou, embora tenha continuado a apoiar Mussolini publicamente). Marinetti comparece na série, assim como outro literato famoso, D’Annunzio, uma espécie de “pai espiritual” que Mussolini escanteou na sua escalada.
Nesse turbilhão, quem aparece em quase todas sequências é o infalível Benito Mussolini – logo, a performance do ator, Luca Marinelli, é fundamental para a consecução do objetivo. E ele entrega, alternando os maneirismos corporais que nosso inconsciente ótico conhece, pela saturação de imagens públicas do líder italiano, com instantes íntimos de vulnerabilidade, que apenas podemos imaginar. Em vários momentos, Mussolini vira o rosto para a câmera e faz comentários sobre pessoas e fatos, rompendo a quarta parede – a princípio pode soar cansativo, mas o resultado final convence. A esposa Rachele (Benedetta Cimatti) também usa desse recurso, bem menos, claro – ela foi mantida sempre à distância por Mussolini. A amante e conselheira Margherita Sarfatti (Barbara Chichiarelli), também personagem real, encontra maneiras de humilhá-lo tanto em público quanto em privado, mas sofre as consequências – sobretudo à medida que o parceiro se consolidou no poder.
A potência sexual do ditador é outro aspecto que “M – O Filho do Século” excele – mesmo tendo sido diagnosticado como sifilítico na juventude, Mussolini se comportava como um obsessivo sexual. Todos esses excessos estão no livro que serviu de base para a série, sucesso de público e crítica, de autoria de Antonio Scurati. Malgrado reparo de historiadores quanto à imprecisão de alguns fatos, o escritor afirmou que a era atual exige uma cooperação entre o rigor da precisão histórica e a arte do romance.
E completou:
O livro significa, acima de tudo, lidar com a consciência coletiva reprimida, o fascismo como uma das matrizes da identidade nacional (italiana), e fazê-lo por meio de uma nova narrativa popular e inclusiva, de acordo com a vocação do romance. Fui movido pela crença de que, após a queda histórica do preconceito antifascista, um romance sobre Mussolini era possível e, portanto, necessário justamente para renovar as razões do antifascismo.
Scurati já escreveu e publicou mais quatro volumes sobre Mussolini, cada um sobre período específico sobre a vida do líder fascista, até sua morte em 1945. É de esperar-se novas séries no streaming.