Luta de Classes
Spike Lee Joint
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2025
“A Spike Lee Joint” é a designação utilizada para os filmes dirigidos pelo realizador Spike Lee, que se tornou sua assinatura de marca, aparecendo frequentemente nos créditos finais – uma tradução aproximada de joint seria “armação”, mas a implacável IA também registra um joint, ou cigarro de maconha, é um rolo de papel de seda que contém cannabis para ser fumado. “Luta de Classes”, finalizado em 2025, é a nova armação desse prolífico e inquieto diretor, que, aos 68 anos, depois de “Infiltrado na Klan” (2018), uma caudalosa produção de clips musicais, propaganda, documentários, além de longas mais ou menos bem recebidos, mas sempre provocativos – dada sua peculiar e instigante leitura do universo cultural e racial norte-americano – reaparece com um projeto conservador, se é que cabe o uso dessa palavra carregada de significados.
Conservador, mas nem por isso menos provocativo e inovador: conservador revolucionário seria uma acepção plausível para o filme. Além disso, eu não odeio rap. Eu amo rap. Olha… se eu odeio rap, o que são as duas músicas do A$AP Rocky, sabe? E o A$AP adora jazz – foi sua resposta quando indagado sobre a razão de crucificar o aspirante rapper Yung Felon, encarnado por A$AP Rocky, diante da negação do experiente e mogul musical David King (Denzel Washington) em aderir ao oportunismo comercial do jovem (e sequestrador). O spoiler aqui é quase inevitável, a sequência do diálogo entre os dois – intergeracional e intercultural – fecha a trama e sintetiza a proposta: para King, o rap parece desprovido de alma, a despeito dos seguidores compulsivos. É na música negra baseada no jazz e no gospel que King, ao final da jornada de “Luta de Classes”, reencontra autenticidade e legitimidade.
Se Spike foi criticado por essa visão crítica do rap, comprovou mais uma vez que sua linguagem continua cutucando valores consolidados do establishment cultural negro nos EUA. No ambiente carregado de tensões raciais em que navega, não é pouca coisa, é na verdade uma empreitada cheia de riscos. É nesse sentido que Spike Lee é um cineasta eminentemente político, imerso no mundo do entretenimento, mas sempre agudo nas suas proposições.
“Luta de Classes” foi inspirado no clássico de Akira Kurosawa, “Céu e Inferno”, de 1963, cuja sinopse é a seguinte: executivo de empresa de calçados torna-se vítima de extorsão quando o filho de seu motorista é sequestrado e retido para resgate. A versão moderna guardou o traço básico do original, a luta de classes subjacente ao drama, mas situou-o no contexto contemporâneo da indústria musical dos EUA – ou seja, como a música é criada e disseminada, fluindo (em ambas as direções) entre os escalões mais altos e mais baixos da sociedade.
O filme do realizador japonês, por sua vez, foi tirado de livro “King’s Ransom” (1959), do escritor americano Ed McBain. Spike recebeu o roteiro original antes da pandemia de COVID-19 e se envolveu na reescrita depois que Denzel Washington telefonou e disse: Spike, é o D. Olha, eu tenho esse roteiro. Vou te enviar pela FedEx. Leia.” Foi uma ligação de 45 segundos, suficiente para fechar a produção.
Este é o quinto filme da joint Denzel-Spike. A história começa com vistas arrebatadoras de Manhattan e da sacada do apartamento de David King, na orla do Brooklyn, com um panorama espetacular da famigerada ilha. Conhecido por ter “os melhores ouvidos do ramo” – que ele mesmo faz questão de reiterar – o mogul esteve por trás de cinquenta vencedores do Grammy e incontáveis sucessos nas paradas musicais. Executivo da música, discute seu plano para retomar o controle da Stackin’ Hits, a gravadora que fundou. O negócio desandou: cinco anos atrás, King vendeu parte das ações e o business está prestes a passar para as mãos de uma holding, com o risco de dispersar o valioso acervo da gravadora. É quando recebe a notícia do sequestro do filho, desmentida logo em seguida: quem foi sequestrado é filho do seu motorista e companheiro de décadas, Paul (Jeffrey Wright).
“Luta de Classes” traz também Spike em seus melhores momentos de cinema de ação – as cenas da perseguição no metrô, o famoso o trem 4 do Brooklyn para o Bronx, são de tirar o fôlego (sem perder o humor). Simultâneo à perseguição, destaque também para as festividades do Dia do Porto Rico, onde o grande pianista da salsa music, Eddie Palmieri, se apresentava.
E traz, sobretudo, Denzel Washington em uma atuação impagável, cheia de improvisações, de pequenos gestos e expressões inéditos: a joint funcionou.