Lumière! A Aventura Continua
Resgatando os pioneiros do cinema por um ex-judoca nostálgico
Por Fabricio Duque
Talvez (e quase com certeza absoluta) se não fosse pelos Irmãos Lumière, nós não teríamos o que chamamos hoje de cinema. Esses franceses vislumbraram um futuro, uma expansão de nossos olhares internos, quando em 28 de dezembro de 1995 transformaram e apresentaram a fotografia estática em micro-curtas-metragens pelo Cinematógrafo (uma máquina de filmar e um projetor de cinema), no Grand Café em Paris (para cerca de 200 membros da Société d’encouragement pour l’industrie nationale (Sociedade para o Desenvolvimento da Indústria Nacional), e marcando o nascimento do cinema como espetáculo coletivo. Sim, agora temos a dimensão exata da importância dessa sétima arte, que é considerada o misto de todas as outras, por incluir imagens em movimento, narrativa e som e também por despertar as emoções mais diversas, contraditórias e complexas. Quando esses vanguardistas exibiram vidas cotidianas para serem assistidas (e contempladas passivamente) em uma tela com luz projetada, houve uma revolução do que se via e imediatamente consequente da própria existência, substituindo o individual pela percepção do social coletivo, permitindo assim que instantes e memórias pudessem ser eternizadas e documentadas.
O que os Irmãos e engenheiros Lumière, os pioneiros, realmente queriam: filmar a extensão da coloquialidade naturalista de seus comportamentos em ação, ainda que muitos explicitamente teatrais e encenados, visto que é quase impossível ser o que se é quando alguém nos aponta uma câmera. E tudo por um viés todo particular de uma sociedade francesa. Mas como preservar essa história que completa em 130 anos em 2025? Sim, sempre há alguém apaixonado que caminha na contramão para conservar a memória, como é o caso do francês de Lyon, Thierry Frémaux, que está a frente do Instituto Lumière que se preocupa com a “lembrança da lembrança” dos irmãos Auguste e Louis.
Em “Lumière! A Aventura Continua”, o ex-judoca, e atual diretor artístico do Festival de Cannes, Thierry Frémaux atualiza a aventura cinéfila de seu primeiro documentário de 2016 “Lumière! A Aventura Começa” (que restaurava 114 obras). Nesta segunda parte, há mais 120 filmes, também restaurados, num total de mais de 2000 realizados pelos Irmãos Lumière ao redor do mundo, mas curiosamente nenhum no Brasil. No sentido bom da ideia, Thierry é um típico francês que viveu os “áureos tempos”, que contempla tudo o que enxerga para depois refletir e traçar definições opinativas. Isso está bem explícito na forma como conduz a narrativa deste filme. Por uma narração que autoexplica o que se mostra na imagem, que une didática analítica com poesia subjetiva, numa mistura de memória afetiva e emoção racionalizada, entre o impulso de uma criança ao cuidado de um adulto, “Lumière! 2” celebra apaixonadamente, por uma cinefilia incondicional, a essência do gostar, a lembrança do sentir e a ação do assistir.
“Lumière! A Aventura Continua” é muito mais que um documentário, é uma aula de cinema, que tem informações demais que chega a deixar o espectador zonzo, maravilhado, anestesiado e desesperado ao mesmo tempo. Tudo aqui é uma experiência-aventura-jornada quando explora as raízes dessa arte cinematográfica secular por curtas-fragmentos que formaram a linguagem do cinema moderno, influenciando todos, sem exceção, todos os cineastas e “aspirantes” que vieram depois. Outro ponto alto deste documentário é também bem francês: a implicância de Thierry Frémaux com Georges Méliès, que “encena o que deveria ser natural”. Nos 120 novos filmes apresentados aqui, seu diretor-professor explica com pormenores contextualizados, entre curiosidades, digressões, projeções teóricas e partes técnicas, cada característica formal dos Irmãos Lumière, e também, como um especialista de uma obra de arte, identifica o que é verídico ou não.
Os filmes da “Belle Époque” Societe Lumière documentava registros de espaços públicos, praças, ruas, monumentos, além de cenas familiares e de trabalho, eventos, paradas e exercícios militares e imagens de viagem. E muitos movimentos. De carros, charretes, trens, barcos e principalmente pessoas em ação. Nós percebemos uma orgânica ingenuidade burlesca. Uma pureza ainda tímida em frente às câmeras. E desde o início vários “papagaios de pirata” (o filme ficcional “Papagaios”, de Douglas Soares, explica bem isso), que ficavam passando na frente da câmera ou se posicionavam próximo à filmagem. Sim, era uma outra vida. Parecia até recriada em computador. Tão distante e ao mesmo tempo tão próxima por eternizar essas ações automatizadas em tracking shots. “Lumière! A Aventura Continua” é um filme que importa do passado as cenas cotidianas da vida na França e no mundo no final do século XIX. É uma viagem nostálgica, cinéfila e de, como já disse, resgatar nossas memórias afetivas de épocas que não vivemos, mas que podemos observar e assim conhecer o antes para entendermos o nosso agora de hoje. E até mesmo com refilmagens por um Francis Ford Coppola imbuído de action.


