Linha Tênue
A manutenção de uma imagem
Por Vitor Velloso
Cinema Virutal
Entre as últimas do mundo digital,“Linha Tênue” de Boris Khlebnikov, aparece como uma pequena surpresa em meio ao descarte ininterrupto que o streaming brasileiro vem sofrendo. O longa é consciente em sua proposta, a degradação moral do trabalhador diante das instituições é uma constante inequívoca. A cada nova cena, Oleg (Aleksandr Yatsenko) sofre um novo impacto em sua vida, seja por suas atitudes ou questões exteriores que fogem de seu controle. Porém, o filme não trabalha o peso de suas atitudes no convívio com sua esposa, por exemplo, um eixo essencial para a compreensão da narrativa. Alcoolismo e claros abusos acabam findando em um “romance problemático, mas sincero”, algo que vai perdendo o sentido na própria construção, que expõe parte dos problemas sociais vividos pelo personagem, na perspectiva de tratá-lo como vítima de um sistema rigoroso de desmoralização.
Alguns veículos estão utilizando o espaço deixado por “Linha Tênue” para criar categorizações sociais da Rússia e atacar determinadas figuras políticas, de Putin à Lavrov. Deve-se tomar cuidado com diagnósticos apressados e irresponsáveis. A manutenção do estereótipo do homem russo bêbado e abusivo, tem um caráter internacional, não por acaso o projeto apresenta ele mais uma vez. Está claro que a verve comercial toma as rédeas aqui. Assim, quando o filme assume a máxima do “tudo vai ficar bem”, temos a lógica interna dessa regulação de um arquétipo que se mantém imutável, e isso é grave. A própria consciência crítica dessa representação primária deveria cair por terra no trato da desmoralização desse trabalhador diante das instituições que mantêm esse estereótipo de pé. Mas o longa caminha para o lado contrário, cria uma normativa que centraliza suas narrativas em um drama onde os coadjuvantes não são desenvolvidos e diversas questões do roteiro são deixadas de lado. Katya (Irina Gorbacheva) é deixada de lado na maior parte da construção. Não por mera coincidência, os créditos do Letterboxd apresentam a personagem como: “Katya, esposa de Oleg”.
Poucas coisas importam além da ética e do orgulho de Oleg, muitas vezes confundida com dignidade. O próprio embate com a direção do Hospital de Emergência é uma merda formalidade para as crises internas do personagem. Essa ausência de um olhar crítico para a realidade, impede que parte dos acontecimentos possuam relevância direta para o espectador. Aliás, o tom cíclico dessa perda de consciência se revela absolutamente subjetivo, naturalizado, anti-materialista e conservador. É uma clara inclinação para a internacionalização de um projeto que procura condensar uma série de estereótipos (a cena da briga durante o feriado, é um exemplo) e projetar a partir de um olhar “descentralizado” dessa cultura. Qualquer espécie de revisionismo moral rasteiro deve ser compreendido como ampliação de mercado. Não por acaso, o longa chega ao streaming brasileiro com uma sinopse (propositalmente replicada aqui) terrivelmente reacionária e falaciosa.
“Linha Tênue” é incapaz de compreender as próprias motivações que projeta na tela. De acordo com o texto divulgado, Katya parece ser incompreensiva e Oleg aparece como um “homem difícil, mas determinado”. O leitor que assistiu o filme sabe que não é assim que as coisas funcionam. Sua esposa é um mero objeto de amparo emocional e sexual para ele, e infelizmente, o projeto não se esforça para se distanciar disso. Desenvolvendo pouco o que faz Katya sofrer e tomar suas decisões. E a montagem segue a cartilha. O cineasta não possui grandes méritos nessa construção de manutenção conservadora, pelo contrário, caminha conforme o cinema europeu, com seu naturalismo fajuto e a câmera na mão em momentos tensos, a mise-en-scène está além do tacanho francês comercial, mas não se distancia dos mais ordinários do leste do “velho continente”. O rigor aqui é Oleg, não seus espaços, ainda que vez ou outra os diálogos busquem relembrar o espectador que não estamos em uma grande capital do país.
Se inicialmente elenquei como “surpresa”, é por enquadrar o projeto na mesma linha dogmática que estamos acostumados, mas com uma diretriz abertamente moralista. Dessa vez o negócio teve pouca vergonha.