Lilith
A origem do patriarcado
Por Paula Hong
O fascínio em torno da origem de Lilith perpassa por representações artísticas — sobretudo nas pinturas, sendo a de Michelangelo, na Capela Sistina, umas das mais conhecidas por colocá-la em volta da Árvore do Conhecimento —, que a interpretam ora como demônio, ora como deusa, ora como a razão dos alastrantes infortúnios na Terra, ora como heroína. Neste sentido, o novo filme de Bruno Safadi, “Lilith”, repensa o mito, colocando-o na contemporaneidade das discussões feministas que atualizam a perspectiva condenatória de Lilith, muito alimentada ao decorrer da história, para trazer uma interpretação legitimatória à sua passagem — que deixou marcas — no imaginário Ocidental, sobretudo judaico-cristão.
Para tanto, Safadi introduz a mística do mito com longas tomadas de uma cobra que rasteja, a mudança gradual da lua cheia para minguante, o céu alaranjado demarcadamente enunciando os estágios precoce de uma convivência fadada a tornar-se dominada pelo azul hipnótico e devastador da noite. É assim que Lilith (Isábel Zuaa) e Adão (Renato Góes) são localizados no isolamento como os únicos habitantes (humanos) da Terra, rodeados pela natureza imperante. Tendo somente um ao outro, a convivência (e, de certa forma, dependência) dos dois não supre as expectativas de dominância de Adão: Lilith exala uma densidade de autonomia (dos sentidos, do pensamento, da relação que tem com seus arredores) que o intimida e o fascina ao mesmo tempo.
A atuação de Isábel Zuaa como Lilith se destaca não somente pela presença soberana natural que detém, mas também pelas falas carregadas de aderência poética atreladas às movimentações corporais de dança contemporânea para atestar uma espécie de roupagem artística reforçada por experimentações visuais gráficas. O filme centraliza a figura de Lilith de modo a sublinhar o descontentamento patético de Adão para com a forma com que suas expectativas da dinâmica entre eles são postas abaixo.
Renato Góes consegue personificar tentativas de dominação respaldadas pelo contrato entre homem e Deus. Afinal, ele é feito à sua imagem e semelhança e, como Lilith não foi feita a partir de Adão, sua descartabilidade e substituição são legitimadas pelos supostos algoros da solidão masculina. Se Lilith é lida ao longo da história como a tentação, a persuasão que levou Eva a cometer o pecado original, então Adão é lido hoje como a fonte embrionária do típico comportamento masculino que reverbera através da aprovação dos princípios religiosos incrustados na régua moral da nossa sociedade.
Com isso, “Lilith” não tem receio em alongar o ritmo de cada cena, com suas dissipações constantes, animações que beiram a um psicodelismo opaco, menos ousado, servindo de intervalos entre a partida de uma cena e chegada de outra. A bela fotografia consegue ser bem sucedida quando toma para si o dever de registrar a magnitude da natureza para acentuar a espacialidade que aproxima e afasta os dois. Em conjunto com a direção de arte, a obra possui belas molduras au naturel nacionais e internacionais que enquadram Lilith como uma deusa, detentora de vasto conhecimento esotérico, enquanto Adão utiliza-se do que tem à mão para arquitetar a expulsão de Lilith. É como se Safadi estivesse pintando sua interpretação dos escritos sobre Lilith em 24 quadros por segundo.
Embora as escolhas estéticas sejam admiráveis e visualmente agradáveis, o ritmo do filme não é exatamente compatível com o que os quadros oferecem para manter atenção integral às cenas. “Lilith” é um filme cuja proposta temática de releitura sob o prisma do pensamento contemporâneo sobre as dinâmicas de poder entre homem e mulher (ou, melhor colocado, do homem sobre a mulher), sobretudo quando Eva (Nash Laila) entra na narrativa, carece de um tato mais aguçado para a elaboração de uma lógica cadenciada por cenas capazes de assegurar que não seja necessário dilatar em demasiado os eventos, como se para esperar que o espectador assimile o ocorrido antes de expôr mais um enunciado poético, seja pelo diálogo ou pela composição cênica. Sente-se o filme como mais longo do que realmente é.
Um dos aspectos mais notáveis do filme consiste no enlace entre Lilith e Eva. A simbologia implícita — e explícita pelas falas das duas personagens — no breve companheirismo desenvolvido entre as duas pode ser associado à rede de apoio que mulheres hoje criam entre elas, possibilitando que muitas sejam salvas quando mordem a maçã: este fruto que elucida a liberdade, a lucidez, o conhecimento que não querem que saibam para permanecerem ignorantes às submissões e violências que sofrem.
Por fim, a punição de Lilith pela vingança bem executada é reflexo de sua independência num contexto levado a cabo pelas palavras divinas. Na cena em que é queimada viva, como um bruxa, reside uma das origens do que vemos hoje nos noticiários sobre feminicídio no Brasil, porque a verdade é que Lilith pode ser considerada como a primeira mulher a habitar a Terra, mas há várias outras que sofrem pelo que ecoa desde então. Se Lilith estivesse viva, agora, será que ela acharia assim tão diferente do que foi em seu tempo?