Lidando com os Mortos
Ressignificando zumbis
Por Pedro Sales
Mostra de São Paulo 2024
Conforme a psiquiatra suíça Kübler-Ross, existem cinco fases do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Em “Lidando com os Mortos“, cada família está em uma fase diferente. A bem da verdade, uma delas, inclusive, é tomada de assalto pela morte. O longa de estreia de Thea Hvistendahl aposta em uma intersecção entre drama e terror para interpretar esta dor que, uma hora ou outra, chega a todos: o luto. A obra, então, investe em uma atmosfera fúnebre, silenciosa e que reforça o isolamento pós-morte. Junto disso, a figura do zumbi é ressignificada. Deixa de ser apenas aquele corpo sem vida que persegue as pessoas para canibalizar os vivos para ser uma oportunidade de estar mais uma vez com aqueles que se foram. Apesar disso, parece que o longa não encontra de forma definitiva o equilíbrio entre a proposta emocional e o terror.
Vencedora do prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes 2021 por “A Pior Pessoa do Mundo“, Renate Reinsve interpreta Anna, uma mulher que vive com o pai em uma rotina soturna em que tenta assimilar a morte do filho. Neste sentido, pode-se dizer que ela está na fase da depressão. Essa sensação já é contrária ao que David (Anders Danielsen Lie) e sua família vivem. Ele é um humorista com lar aparentemente estável e bem humorado. O luto aqui é algo que nem chega a ser de fato experimentado, quase uma dúvida. Enquanto a apresentação da idosa Tora (Bente Børsum) já se dá no contexto do sepultamento de sua companheira – ou irmã? Portanto, ainda está na fase inicial, negação. A narrativa dessas três famílias se entrelaça, então, na perda. Para além da dor, há algo a mais que os une: o retorno dos mortos. Em certa noite, as luzes de toda Oslo, capital norueguesa, apagam-se. Não é mera queda de energia, mas fenômeno sobrenatural em que os falecidos voltam à vida.
A direção de Thea Hvistendahl em “Lidando com os Mortos” contrasta esses dois momentos com uma unidade que se vale bastante do silêncio, em uma aura de introspecção. Diante da ausência, a mise-en-scène pontua o isolamento por meio de planos fixos em que os membros da família são enquadrados por entre frestas de janelas e portas, solitários. Passada a euforia do contato com o ente morto, eles percebem que não são bem as pessoas que eram antes, e retornam para esse tom taciturno e fúnebre de antes. Outros filmes, como “Cemitério Maldito” (1989), exploram justamente esse retorno dos mortos como esperança para lidar com luto, mas na chave de horror. Enquanto na obra adaptada de Stephen King, a experiência da ressurreição no cemitério de animais dava direito a gato maníaco e criança diabólica, aqui os zumbis são apáticos, com rosto inexpressivo e carne já em decomposição, o que demonstra o bom trabalho de maquiagem da produção.
Dessa forma, o contato com o morto passa a ser, também, uma forma de encarar a morte e o luto. Quem não gostaria que um familiar retornasse do além para ocupar o lugar deixado? Ali, todos querem, mas ao lidarem com o corpo sem a mesma vida e identidade de antes, o desejo já parece ser um pesadelo. Não tanto no sentido de aterrorizar, uma vez que a direção só engrena no terror de fato em momento muito avançado da rodagem. Dá a sensação, até, de que o filme “se envergonha” de ser terror. Ao longo da narrativa, desconstrói as convenções de filme-de-zumbi para evocá-las apenas no final de forma muito apressada. Não mais apáticos, os mortos-vivos passam a trazer risco. Reside neste aspecto uma das maiores incongruências do longa: dedica-se em sua maior parte a ser um drama que ressignifica os zumbis e depois cede.
“Lidando com os Mortos” parte de uma premissa bastante interessante: o retorno dos mortos como forma de enfrentamento do luto e aceitação da perda. Apesar disso, até mesmo o seu efeito psicologizante diante do tema acaba sendo repetitivo. O clima introspectivo e com diálogos esparsos é tônica, a diretora aposta muito em closes de rostos encovados e desolados para lidar com a tristeza. A decisão é extremamente acertada para transmitir o aspecto fúnebre, mas não há evolução emocional no longa, nem mesmo na “ressurreição”. As faces entristecidas estão sempre aqui. Além disso, existe um problema evidente em articular diferentes gêneros. Os problemas no longa de estreia, porém, não apagam a beleza melancólica construída e o ímpeto de repensar o horror dentro de uma esfera dramática, mesmo não sendo o melhor resultado possível.