Curta Paranagua 2024

Liberdade em Chamas

Ucrânia em Chamas!

Por João Lanari Bo

Durante o Festival É Tudo Verdade 2023

Liberdade em Chamas

Liberdade em Chamas” é o documentário que o realizador Evgeny Afineevsky – nascido em Kazan, na Rússia, depois residente em Israel e finalmente em Los Angeles – literalmente extraiu do calor da guerra da Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022 com a invasão russa. A dramaticidade do título não é, portanto, um recurso demagógico: em quase duas horas de projeção percorremos escombros, ruínas, mortes, testemunhos, tragédias e aflições, captados imediatamente após os acontecimentos que os geraram. O foco principal é a população civil ucraniana, conjunto de cidadãos e cidadãs pegos no contrapé dos ataques dos mísseis ultramodernos lançados da Rússia. Tudo se passa em átimos de segundo: podem ser também minas anti-pessoal, ou artilharia pesada, ou tanques, ou disparos de Kalashnikov, o popular AK-47, fuzil de assalto de calibre 7,62x39mm criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov e produzido na União Soviética pela indústria estatal IZH. Mais de 20 mil civis ucranianos faleceram até agora, segundo o governo em Kiev. Entre 30 mil e 40 mil morreram em um ano de conflito, de acordo com fontes externas. Ninguém sabe ao certo, pois o recebimento de informações de alguns locais onde ocorreram intensas batalhas foi adiado e muitos relatórios são ainda pendentes de comprovação, como consta em informe da ONU.

As filmagens ainda estavam acontecendo na segunda semana de agosto, com Afineevsky concluindo a primeira versão do filme apenas em 31 de agosto, data de abertura do festival de Veneza, onde foi exibido. Posteriormente, novas imagens foram adicionadas, a última delas em 8 de março de 2023. Foram 40 cinegrafistas e 9 editores trabalhando a toque de caixa documentando os trágicos eventos. Boa parte dos entrevistados são pessoas em trânsito: seriam quase 8 milhões de refugiados que saíram da Ucrânia para outros países, sobretudo Polônia (2 milhões) e até o Brasil. Quase 10 milhões teriam se deslocado no interior do país, fugindo das áreas de conflito: esse dado é dinâmico e de difícil mensuração. “Liberdade em Chamas” é produzido com viés favorável à Ucrânia, claro, mas não pretende oferecer explicações ou justificativas acerca dos responsáveis por esse cataclisma: o que está na tela é o drama humano, praticamente não há depoimentos de políticos ou analistas. O documentário de Evgeny Afineevsky mais assertivo politicamente é “Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom” (2015), indicado ao Oscar e disponível na Netflix. A invasão de 2022, como se sabe, violou princípios básicos de Direito Internacional, expressos na Carta da ONU, assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945, cujo artigo 2º parágrafos 3 e 4 afirma :

  1. Os membros da Organização deverão resolver as suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo a que a paz e a segurança internacionais, bem como a justiça, não sejam ameaçadas;
  2. Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas.

Como um dos pilares da ONU é o direito de veto de cinco países no Conselho de Segurança – EUA, Rússia, China, Inglaterra e França – as condenações ao Estado autocrático de Putin são sistematicamente vetadas pela Rússia. A própria guerra, pelo menos da forma como é conduzida no plano retórico por Wladimir Putin, assemelha-se ao contexto da Segunda Guerra Mundial: dizer que a Ucrânia vai ser des-nazificada é quase uma alegoria stalinista, como se o atual governo em Moscou não fosse ele mesmo um regime autoritário de direita.

Liberdade em Chamas” tem também uma analogia com os documentários produzidos entre 1943 e 45 na URSS, sob a égide do grande diretor de origem ucraniana Aleksandr Dovjenko, responsável por algumas das obras-primas do cinema soviético – “Arsenal” (1928) e “A Terra” (1930), entre outros. Em agosto de 1943, Dovjenko submeteu ao Comitê Central do Partido Comunista o projeto “Ucrânia em Chamas”, cuja apresentação indicava: Epopeia cinematográfica consagrada ao sofrimento da Ucrânia sob a opressão nazista e à luta do povo ucraniano pela honra e liberdade do povo soviético. O Comitê decidiu vetar roteiro e produção do filme: aparentemente Stálin não gostou da ideia, e Dovjenko foi acusado de nacionalismo estreito e medíocre.

Malgrado a frustração, o diretor realizaria em 1945 um projeto semelhante, intitulado “Vitória na margem direita da Ucrânia”, em coautoria com Iúlia Solntseva e narração do próprio Dovjienko, com imagens captadas por cinegrafistas de atualidades. Antes, o diretor havia supervisionado a produção de “A batalha pela nossa Ucrânia Soviética”, também a partir de material filmado pelos inúmeros cameramen espalhados pelo país, no colossal esforço de guerra contra a Alemanha nazista. “A batalha…” foi exibido nos Estados Unidos em 1944, com o título que seria do documentário vetado, “Ucrânia em Chamas”. Um crítico do New York Times notou que, embora as cenas de batalhas tivessem uma semelhança aflitiva com as tomadas habituais dos cinejornais, são os rostos dos civis, velhos e jovens, gravados com tristeza, desafio e coragem, que fazem de “Ucrânia em Chamas” um documento vital.

3 Nota do Crítico 5 1

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