Curta Paranagua 2024

Lembranças de Todas as Noites

Gracioso cotidiano

Por Pedro Sales

Durante o Festival Olhar de Cinema 2023

Lembranças de Todas as Noites

A prevalência do padrão sempre impõe uma acomodação diante do que já é conhecido, e assim tudo que é diferente é estranho. Essa afirmação se aplica totalmente a “Lembranças de Todas as Noites”, longa participante da mostra Competitiva Internacional do Festival Olhar de Cinema 2023. O filme da diretora japonesa Yui Kiyohara desafia o hegemônico no cinema. Narrativamente, esta obra é pequena em suas proposições dramáticas, as reviravoltas, por exemplo, são inexistentes. Os mais impacientes podem até apontar que aqui não há nenhum “fiapo” de história. Entretanto, usar dessa escolha criativa como crítica ao resultado final é no mínimo ingênuo. Desde os primeiros minutos, fica evidente que a maior preocupação da realizadora está nos deslocamentos, no silêncio e na paisagem urbana, assuntos que muitas vezes podem nos afastar em virtude desse mundo imediatista que enfrentamos.

Em Tama New Town, o maior conjunto habitacional do Japão, a padronização arquitetônica torna mais de 14 quilômetros uma coisa só. “Tudo parece igual aqui. É fácil se perder”, diz uma das personagens em dado momento. Esse sentimento parece oprimir três mulheres de diferentes idades. O espaço urbano, por mais “bonitinho” que possa parecer, reforça a solidão dessas mulheres. O objetivo de Kiyohara, portanto, é demonstrar como as três lidam com isso. Elas deambulam quase sem nenhum propósito em um atravessamento silencioso de diferentes espaços. A câmera capta esses deslocamentos sempre em planos gerais, diminuindo a figura humana na realidade urbana. Assim, a obra preza bastante pelo silêncio e a contemplação desses caminhos. A quebra só ocorre por meio da trilha sonora única. Com uma sonoridade assumidamente experimental e dissonante, as faixas trazem instrumentos como xilofone, teclado e trompete, mas que não surgem ao acaso, já estavam no filme desde o plano inicial.

O silêncio das caminhadas em “Lembranças de Todas as Noites” se associa fortemente à fruição do cotidiano pela ótica das três principais personagens. Olhar as vitrines de lojinhas, ajudar velhinhos e subir em árvores são atos contemplados pela direção de Kiyohara. Desse modo, as pequenas ações do dia a dia adquirem uma carga de graciosidade. Ao observar alguém dançar, uma das personagens se sente impelida a copiar os mesmos passos. Além desse, existem outros “episódios” que atribuem leveza ao cotidiano. A quietude, então, é onipresente no longa no aspecto narrativo das pequenas atividades diárias e formalmente também, com uma clara economia cênica. O lendário cineasta Yasujiro Ozu ficou imortalizado pelos seus “pillow shots“. O termo cunhado pelo teórico Noël Burch se trata de planos estáticos que geram um certo “respiro” na história. Ozu intercala a ação dos personagens com tais planos, uma inserção de calmaria em meio à narrativa.  A diretora, honrando o legado do mestre do cinema japonês, resguarda esse cinema de detalhes, do ínfimo, simples, ordinário e sutil.

Apesar dessa condução dilatada, que preserva a duração das ações, enriquecendo o caráter naturalista da obra, o filme não consegue efetivamente construir um envolvimento com as personagens, ao menos não no que diz respeito à história de cada uma. Existe um certo distanciamento em relação ao que fazem e o que cada uma carrega com si. Claro, existem cenas que inferem seus problemas: desemprego, possível luto, término de relacionamento. No entanto, o longa não se aprofunda tanto nesses conflitos. Desse modo, a conexão com as personagens surge, em primeiro lugar, pelas intersecções desses pequenos encontros no complexo habitacional. O que une as três mulheres – a solidão em meio ao espaço urbano – é o mesmo aspecto que mais toca o espectador, sobretudo aquele que também se sente tão pequeno na cidade, com suas caminhadas silenciosas e alguns momentos de felicidade que surgem na imprevisibilidade dos encontros do dia a dia.

Lembranças de Todas as Noites” se estrutura sobretudo no simples, no corriqueiro. Yui Kiyohara explora narrativamente as pequenas atividades diárias. Assistir ao filme, portanto, é como ver a vida passar, no caso, a vida das três mulheres que se sentem sós na imensidão e na padronização arquitetônica do complexo habitacional onde vivem. Ao dramatizar o cotidiano, a obra reforça seu caráter naturalista, principalmente porque os acontecimentos são facilmente correlacionáveis com o que o espectador vive. Recuperar vídeos antigos na fita cassete ou ir à casa de alguém e descobrir que a pessoa se mudou são momentos em que a recuperação do passado se torna uma condição para a manutenção da felicidade no presente. O gracioso cotidiano de Kiyohara se associa ao mínimo (com exceção apenas da trilha sonora), em episódios e situações que estão sempre diante dos olhos, mas que quase nunca são vistos, nem na rotina, tampouco no cinema.

3 Nota do Crítico 5 1

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