Lamento
Pesando os infortúnios
Por Fabricio Duque
Steve Jobs, o “pai” da Apple, disse, em uma de suas apresentações, que “as pessoas nunca sabem o que querem até uma novidade ser apresentada a elas”. Essa máxima gera a mensagem de que é preciso sempre inovar para assim criar um consumo prolongado. Muitos anos depois dessa ideia, o cinema, ainda traz entranhado o oposto disso tudo: a necessidade de (se adequar) entender as demandas e quereres do público a fim de criar obras cinematográficas de “sucesso garantido”, como uma fórmula confortável. Pode observar. Os filmes que quebraram essa barreira e impuseram autoralidade são os mais lembrados e icônicos. Há muito o cinema deixou de ser livre. Cada vez dominado mais pela obrigação de gerar bilheteria. Cada vez sofrendo mais os efeitos da estrutura que criou. O cinema brasileira ainda adiciona camadas quando se opta pelo tom popular, mais palatável, didático e de fácil acesso, em que nada pode sugerir, tem que explicitar. E com moral conservadora, à luz da família brasileira, mesmo pela veia mais artística. “Lamento”, uma das onze estreias nos cinemas, mesmo com a crise pandêmica que não sossega, pelo contrário, ganha gás com variantes, está no meio disso tudo.
Exibido na mostra paralela Território Brasil do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2019, o longa-metragem de estreia da dupla Diego Lopes e Claudio Bitencourt marca com vírgula deslocada um que de fuga do comum, aprofundando o submundo, a decadência e seus resquícios de ainda há esperança ao final feliz. De que ainda se pode “empurrar com a barriga” o fundo do poço. Sim, “Lamento” é um filme ainda que. Condicional e tênue entre passividade resignada e comportamento passivo-agressivo para encontrar a utopia na resiliência. O roteiro de Diego Lopes quer uma imersão a la Charles Bukowski, por doses fisiológicas, de ambiente de um hotel, “herança” e nas “últimas”, cru, direto, defensivo, sombrio e propenso aos perigos da noite, e tem o intuito de contar a história de Elder (interpretado de forma irretocável pelo ator Marco Ricca), personagem que sobrevive no limite de seus lutos não superados. Vivendo pesar e mágoa diante de infortúnios. Um ser que precisa ser outro, acostumar-se com a pressão e abandonar as drogas. Há um ditado nos Estados Unidos que diz: “Merdas acontecem”. É só estar no “momento errado na hora errada”. Ou tomar uma decisão, que pode mudar tudo. Lá, esse ditado também significa um “presente”. Uma forma catártica de enxergar que é necessário mudar e “deixar ir”. Mas aqui não. Talvez Elder quer mesmo acordar o “monstro” predador e a “liberdade” de ser outro: o de antes, num misto de “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, com a epifania metafísica de falso existir que se emana de ambientes casuais e passageiros de hotel.
Por mais que “Lamento” esqueça às vezes do público (sua maestria – de desconstrução criativa não pautada no julgamento do que a audiência quer), ainda assim, sua narrativa refugia-se em gatilhos comuns e reviravoltas facilitadoras, potencializando em tela a característica mais incômoda e autodestrutiva do cinema brasileiro: a obrigação de ter que ser explícito. De mitigar toda e qualquer sutileza e/ou sugestão. De nunca permitir “pontas abertas”. Essa autodestruição (especialmente pela não respeito à inteligência de quem assiste) traz muito dos elementos da novela. De ter que ser mais popular. Mais mastigado. Mais rápido nos cortes da montagem. Menos silencioso. Até a comtemplação tem tempo editado para se observar. E por mais que Ricca, cirúrgico em seu papel, desdobre-se para fazer acontecer, se o roteiro não ajuda, nada feito. “Lamento” desenvolve-se pela estética. Fotografia, cenário noir, de naturalidade artificial apresentada, como um espaço atemporal. Um portal de sonâmbulos. Uma entrância infernal permitida pelo necessidade do dinheiro. Ali, o não não pode ser dito. Mas um filme não é só forma e embalagem. O interior base-conteúdo também precisa ser lembrado e trabalhado.
Pois é, Steve Jobs ao ser perguntado do porquê de sistematizar com capricho e técnica o interior dos Iphone visto que “ninguém repara”, ele respondeu “eu reparo”. “Sem o cuidado de dentro, a forma não é nada”, complementou. Outra coisa é sobre a preparação do ator. A impressão que temos é que se gasta tanta energia com o fora que a internalização é esquecida, gerando assim diálogos “nas coxas”, que soam mais como ensaios. Isso é porque falta traços-identidade em suas construções, como o dono do bar e/ou a mulher do protagonista. E ações-reações de improviso, como “dançar no parapeito”. “Lamento”, indicado a Melhor Filme Estrangeiro do Festival de Burbank, é assim, moldando interpretações por arquétipos robotizados, ainda que carregue temas sócio-político-comportamentais. A travesti apanhando e observada sem humanidade; a questão das grandes redes de hotéis que “matam” os menores; a arrogância dos clientes com “ares de rico”; as prostitutas; as drogas; a funcionária conservadora; tudo está aqui, mas sem imposições gritadas. Concluindo, “Lamento”, mesmo com as inúmeras possibilidades do ainda que, opta pela facilidade do modelo já condicionado. Mais óbvio. Com efeitos dramáticos e uma altamente incompatível música clássica inicial. Um lamento só.