KFZ-1348
O fim físico das memórias
Por Fabricio Duque
O que faz um documentário ser interessante: a história que se conta? A forma como a narrativa é conduzida? Sim e sim às duas perguntas. A filosofia lógica (eco de que guardamos nas profundezas de nossa mente) nos assertiva de que toda e qualquer história deve ser contada, até porque representa a essência do cinema. Caro leitor, olhe pela janela, observe alguém e “jogue a primeira pedra” se não pensou o passado por trás da figura contemplada. Os realizadores estreantes Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso trazem em “KFZ-1348″ (2008) um épico existencialista de um Fusca, traçando assim análises sócio-políticas-comportamentais de seus donos. É a personificação de um progresso que “morre” em um ferro-velho.
“KFZ-1348”, um retrato documental de um tempo pela crônica-estudo de caso, que passou pela produção em massa e estimulou a competição pela “força” do consumismo. A simples necessidade de fato transformou-se em status social. De se aparentar pela posse. De se estar na “moda” e antenado com as novidades do mercado fordista. O filme apresenta os oito donos do Fusca com a placa KFZ-1348. E dessa forma, nós somos convidados a viajar na complexidade de classes, políticas, idiossincrasias, hierarquias, raças e formas de cuidar. Aqui, uma investigação e um álbum de memórias, à moda de um Arquivo Confidencial, o protagonista máquina ganha uma biografia.
O documentário nos informa que “em 1965, a Volkswagen produziu 59.996 fuscas e um deles de placa KFZ 1348 teve 8 donos até 2007”. Um “ritmo da cadência da emancipação econômica”. Pode soar estatístico, e é. A fabricante alemã de veículos revolucionou o tom progressista do Brasil ao laçar o carro mais comentado do mundo, que despertou o “sonho” e o querer sentimental com a necessidade de esbanjar. A narrativa desenvolve-se por imagens de arquivos históricos, cotidianos, jornalísticos e caseiros.
A figura do Fusca, quase a real de “Se Meu Fusca Falasse” (1968), de Robert Stevenson, é democrático, porque é acima de tudo um negócio. Um artefato usual de consumação que enaltece a ideia de que só o dinheiro importa. A trama, entre realizações, desgostos, esperanças, futilidades, egoísmos, hipocrisias, acompanha os oito donos, como uma cabeleireira, um barqueiro que faz travessias de turismo (que “tira no verão, o atraso do inverno”), um pedreiro (conservador, evangélico e preconceituoso que preferiu as dificuldades da vida – e adentrar no crime – a ter que aceitar a mãe lésbica e impor o “certo” de “arrumar um homem”), O mecânico da Oficina Universal (que passa o tempo ocioso com o “prazer” de contar carros na rua de “cinco da manhã as cinco da tarde”), um prefeito “quase cassado”, um bancário (“sensação de prisão trabalhando em banco”), um torcedor da Gaviões da Fiel (“futebol, samba e alegria”), um dono de uma confecção de roupas (“bordados de marcas para feiras”), um dono de um posto de gasolina (“Se o petróleo acabar, eu acabo junto”). “Qual o próximo passo?”, pergunta-se.
“KFZ-1348” é um filme que critica pela observação sem condescendência, deixando a cada um o julgamento moral, principalmente pelas “escolhas livre-arbítrio” de um “ex marginal que encontra Jesus”. Tudo é sobre a história por trás de seus donos e de como é passado o bem. Essa metáfora nos lembra um filme recente produzido pela Netflix, “O Poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia, pela semelhança do que nós deixamos aos outros e os andares percorridos. A estrutura daqui (comparativa com a atualidade) também infere a forma construtiva de “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes.
Tudo é uma experiência que se apropria de memórias afetivas para criar uma nostalgia de uma época. É orgânico, físico, único, magistral e elegante na pobreza como um lixo reciclável. A filosofia do motivo é refletiva, gerando lembranças e e momentos impossíveis, participantes ativamente da trajetória da vida. Assim como o filósofo francês René Descartes de construir uma ciência universal com caráter de verdade necessária, os diretores Gabriel e Marcelo conseguem materializar o racionalismo geométrico do psico-física. “o Homem não muda as influências, conceitos mudam”, diz-se. “Todas nos trinques”, rebate-se com natural tom espirituoso.
“KFZ-1348” termina com um desmonte do presente. Com o fim físico das memórias pessoais. Nosso personagem principal virou pregos. E dessa forma despertou um questionamento de que o tempo de vida inocente não existe mais. Que o progresso chegou com a velocidade de um foguete. Que nos obriga a manter a indústria funcionamento. Nós somos peças obrigatórias à máquina do sistema, nos tornando placas e, um dia por velhice ou desinteresse, seremos abandonados como um brinquedo ultrapassado e retrô a la “Toy Story”. Pois é, não é preciso muito para tornar um documentário interessante. Apenas a história e sua forma de contar. Com produção de João Vieira Jr. e do SBT.