Artigo
Jia Zhang-ke e suas plataformas em 24 quadros por segundo
Por Fabricio Duque
Jia Zhang-ke poderia ser mais um homem de Fenyang, cidade na China, na província de Shanxi (a sete horas de Pequim), se não fosse por sua câmera, maquinário, este, que serve de hospedeiro imagético a seus olhos, expandindo assim possibilidades, projeções e pontes em retratos, sem contudo quebrar os elos de conexão entre o novo e o antigo. O que se objetiva é, acima de tudo, a liberdade de se ser e do agir. Em suas obras, o presente está em processo de desapropriação do passado por uma remodelagem naturalista-coloquial do contemporâneo, como se fossem crônicas-ensaios em uma utópica férias da realidade que inevitavelmente se tornará resignação e sobrevivência. No artigo chinês “Poética da Desaparição”, de Zhang Xudong, traduzido por Hugo Mader, as “transformações sociais e econômicas” nos filmes de Jia são “do ponto de vista das ruas e à margem dos grandes centros”, explorando “desaparecimento, demolição e deslocamento”.
É por isso que “Plataforma”, terceiro filme de seu diretor, após contar a história de uma cozinheiro vivendo em Beijing (“Xiaoshan huijia”, 1995) e de amigos em conflitos de adaptação (“Artesão Pickpocket”, 1998), representa a obra que define o ponto de partida de sua carreira ao poetizar orgânicos simbolismos sobre um novo mundo. É quase profético por “abrir” a era 2000 (ano de lançamento do filme), um novo milênio, por seres humanos, conflitantes em suas “missões” de indivíduos sociais, que deveriam enaltecer heroísmos altruístas, mas que só buscam uma subjetiva liberdade hedónica. O longa-metragem nos conduz pelos sonhos a realizar de uma trupe de artistas. Atores mambembes. Transportados em um caminhão. Com personagens de sufismo ressignificado pelo tempo. Eles não almejam o minimalismo da felicidade e sim a plenitude de um solipsismo blasé, importando a melancolia de um comportamento estrangeiro, incompatível com o ambiente em que vivem.
“Plataforma” nos oferece vinte anos de análise antecipada. No filme, observamos a “nova geração dos anos oitenta” com a insistente perseverança de esquecer a preservação tradicional de um socialismo do passado e instalar o capitalismo necessário para embasar suas realizações pessoais. Zhang-ke permite que entremos em sua cabeça e em seus olhos, para que possamos sentir a quase confissão-terapia de uma intrínseca-enraizada cinefilia. Apresenta-se como um recorte de referências-cenas de outros icônicos filmes. Podemos encontrar a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard (“O Demônio das Onze Horas” com “Banda à Parte”) e de Éric Rohmer; o neorrealismo de Vittorio de Sica e Rosselini; o etéreo realista de Wim Wenders (especialmente em “Asas do Desejo”); o cinema clássico-modernista de Zhang Yimou; a estética-ruína do cinema iraniano; a anarquia-poética-coloquial de Bela Tarr; o descolamento das relações humanas de Théo Angelopoulos (“Paisagem na Neblina”), entre inúmeros outros. Praticamente, um jogo easter-eggs. Sim, toda e qualquer experiência audiovisual é uma viagem. Boa ou ruim, tanto faz. As plataformas servem para isso. Para unir o gosto e o desgosto. A vitória e a decepção. E no meio de tudo, a vida, esquecida pelo saudosismo do antes e a urgência de se chegar ao futuro.
Em 2014, a Caixa Cultural realizou a mostra “Jia Zhang-ke, a Cidade em Quadro”, de Jo Serfaty e Mariana Kaufman. A curadoria quis traduzir a percepção de um olhar poético, palavra que também se define por outros sinônimos: “elevado, sublime, delicado, ameno, aprazível, bucólico, delicioso, encantador, suave inspirador e sedutor”, que devem ser amalgamados e usados sem moderação a fim de uma completa tradução do que se vê. As obras de Jia transcendem o enxergar, atravessando o próprio detalhe e tentando captar, no mínimo elemento, o invisível do significado de uma existência. O catálogo da mostra consegue listar aforismos. E Haicais. Como curtos poemas japoneses (novas importações) que expressam que o mundo é passageiro, passivo de mudanças contínuas. Jo Serfaty complementa: “A cidade em quadro, esquandrinhada, fissurada nos vestígios do tempo; escombros do amanhã. É no fluxo dessa paisagem em transformação com memórias soterradas em montanhas de concreto, que se revela um dos maiores cineastas contemporâneos, Jia Zhang-ke”.
Voltando a “Plataforma”, foco deste texto, seu realizador evoca seus mestres do cinema para construir uma narrativa sem pressa, por longos e estendidos planos-sequência, distantes, quase voyeur, em uma fotografia cotidiana kitsch, com o intuito de acompanhar a “moda da cidade” confrontada com o tempo parado de um lugar que ainda não está pronto para evoluir. Os “rebeldes” são jovens. Ainda imaturos. Ainda infantilizados. E incondicionalmente crentes que suas vidas vitoriosas sempre viverão da arte que criam. Nesta idade, a realidade do transitório é confundida com a passionalidade do eterno. A plataforma de Jia permite que esse transitório possa se descortinar por algum tempo. Ser andarilho das artes (nos “Encontros dos Jovens Amigos”, que “prioriza a unidade” com “planejamento familiar” – a política do “filho único”) arraiga uma salvação a um povo em processo de desconstrução do simples ao “Eldorado” proposto pelas “quatro transformações-mudanças necessárias: Indústria, Agricultura, Defesa, Ciência”. Sem conservadorismo, sem coletividade.
Tudo aqui é uma profecia de Jia que sabe, vinte anos antes, o que acontecerá no instante em que o filme for exibido. É uma retorno (“protegido”) ao tempo para estudá-lo e analisar erros, acertos, orgulhos e covardias. E que uma música inserida não é só uma música. O nada não é nunca só um nada. “A plataforma longa e vazia. A espera parece interminável. Os grandes vagões estão carregando meu amor de vida breve. A plataforma longa e vazia. Solitários, só podem esperar. Todo meu amor indo embora. Nada há no trem que vem”, toca a canção de uma fita-cassete e assim filosofa com epifania-metáfora os gritos de uma catarse. Para os jovens, a diversão dos afortunados. Aos adultos e nos que estão “desprotegidos” à margem, o sofrimento da miséria. A vida para os dois lados é uma festa. Uns aproveitam, outros trabalham na produção.
Jia Zhang-ke, considerado integrante notório da “sexta geração” do cinema chinês, grupo que conta também com os realizadores Wang Xiaoshuai e Zhang Yuan, nasceu em 1970 em um lugarejo ainda governado por Mao Tsé–Tung, numa época efervescente da Revolução Cultural (cuja arte simbolizava o Renascimento ao novo mundo externo). E já em 1980, ensaiava uma economia liberal. Jia então resolveu compartilhar suas incertezas com uma câmera na mão (ou pelo tripé observacional). Queria esmiuçar. Questionar. Entrar em conflitos. Ouvir os porquês de cada um que existisse em seu meio. Seu “grande desejo era filmar as mudanças no momento em que elas aconteciam, a partir das vivências de seus habitantes e da rica dinâmica de destruição e reconstrução de suas cidades. A grande força de seu cinema foi ter conseguido – através da modulação dos elementos em quadro – criar uma fissura temporal e espacial em cada imagem, fazendo com que passado, presente e futuro se encontrem, gerando uma noção de presente que se atualiza a 24 quadros por segundo”, explicou Mariana Kaufman.
A curadora não poderia ter definido melhor a percepção que se tem ao entrar em contato com os filmes de Jia. Nós somos acompanhados por uma vida em ação, sem movimentos bruscos e afoitos. Há uma intimidade liberada de moralismos, explicações, politicamente corretos, julgamentos, sentimentalismos, manipulações e excessos narrativos. As escolhas preterem o minimalismo das formas, das reações, das micro-ações do dia-a-dia e dos impulsos comemorativos dos momentos felizes. Tanto que Jia dedica “Plataforma” a seu pai, figura importante em sua vida e que podemos conhecer melhor em “Jia Zhang Ke: Um Homem de Fenyang”, pelo olhar do cineasta brasileiro Walter Salles. O documentário “caminha” por uma realidade-encenada-editada de sua terra. Seus personagens, atores natos de suas próprias vidas, “andam” por suas próprias pernas, sem a intervenção da “figura” que está por trás das câmeras. “Sem a câmera, eu ficaria sozinho com as minhas sensações, é um oceano humano”, confessa Zhang-ke, em modo terapêutico. O protagonista-homenageado daqui é “um ator desastroso”; “que morava em uma casa que era uma ex-prisão”; que busca o dialeto para “conservar” sua cultura; “um moleque Lailai”; que é apaixonado por filmes indianos e por bastidores; que se utiliza de sua espontaneidade e sensibilidade; que usa sua câmera como um curioso observador; que aborda personagens “não detentores de poder”; que filma o cenário real não glamouroso e não seu inverso, a reconstrução da ilusão nostálgica; que não tem problemas em estender “imperfeições à tenacidade”; que mescla tradições com o hoje.
Em “Plataforma”, Jia usou o tom pessoal, como um diário ficcional filmado ao pai, para contar dez anos (1979-89) a transformação da juventude chinesa e do “perigo” da música pop, que era “o som da decadência por causa de suas melodias leves e suaves”. O chinês “colocou” em seus filmes as memórias da infância, registrando tudo para que não se apagasse, visto que seu país busca a “globalização da americanização” em se “livrar do passado para dar lugar ao novo”. Assim, Jia, com “rosto de menino”, filma planos longos “ociosos” e abertos (que o possibilitam mitigar o sentimento de “cerceamento”). “Só hoje eu digo que sou do meu país porque um dia o deixei. É só na solidão que pode se alimentar a inspiração”, complementa nosso realizador em estudo. Os títulos e subtítulos dos ensaios do catálogo, da mostra citada anteriormente, já por si só pululam haicais-epitáfios. “Um cara culto vindo do interior”, “O antirrealista identificado como realista”, “O não independente considerado ícone do cinema independente”, “A intermidialidade como ferramenta de descoberta do real”, alguns exemplos que nos despertam o fascínio e a incontrolável vontade de acabar logo este texto e se embrenhar em seus filmes.
Será que a maestria do cinema de Jia está em suas contradições? Em ouvir os “inimigos” para entender mais sobre os comportamentos de seus próximos? Há quem diga que seu cinema não é tão político assim, por causa de uma filosófica romantização realista. Pode ser. Mas também não é verdade que o simples fato de respirar já é um ato político? E viver então? Assim, Jia, quando observa, coleta personalidades, idiossincrasias, vulnerabilidades, forças, medos, vontades e utopias. É um inventário de tipos em ações mais banais. Isso mostra mais sobre nós mesmos que um discurso impetuoso-inflamado para estimular uma luta dos fracos e oprimidos. Jia sabe que seu cinema não possui poder suficiente para mudar o mundo, muito menos a mentalidade empírica das pessoas. Mas já é sabido que só é preciso um para semear a ideia de que transformações são possíveis. E poder receber influências da cultura estrangeira e seguir sem desistir de esperar nas plataformas da vida, seus portos de descanso após tantos “murros em ponta de faca”. As obras de Jia Zhang-ke são filmes de esperas. Sobre a força das imperfeições, dos medos, das derrapadas e dos levantes. São filmes entre o ir e o chegar. Entre o movimento e a apatia. A inércia e a atitude. Com ou sem calças bocas-de-sino. Com ou sem apresentações teatrais. Com ou sem a arrogância do presente que duela com a resignação de um presente futuro. Tudo está ali. Nas entrelinhas, nos detalhes, nas suposições e nas vontades super expostas. As plataformas de Jia mostram o caminho, a verdade e a vida.