Jeanne du Barry
Empoderamento histórico de uma linda mulher
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Uma das características inerentes do ser humano é sua curiosidade por descobrir segredos. E se for do passado, de uma época não mais acessível por causa do elemento temporal, essa vontade então se transforma quase numa obsessão. Nós adentramos em uma busca desenfreada por respostas, verdades e por tentativas de compreender os comportamentos, propósitos e embasamentos antigos. Sim, trocando em miúdos, nós somos fofoqueiros e adoramos uma novela da vida privada. E se for sobre pessoas famosas da Realeza, então nossa necessidade fútil está completa. Isso tudo pode ser um relevante preâmbulo para que se possa enquadrar a realizadora francesa Maïwenn Le Besco nesse bojo, não só por sua vontade em traduzir a História de seu país e seus desdobramentos geográficos, como por querer interpretar esse passado com especialistas estudiosos que almejam a certeza absoluta. E é dessa forma que a diretora traz ao Festival de Cannes 2023, como o filme da abertura oficial, “Jeanne du Barry”, cujo elenco conta a própria diretora e com nada mais, nada menos, que o ator Johnny Deep no papel principal, após três anos de “férias” interpretativas (depois da conturbada disputa judicial com a ex-esposa Amber Head). O longa-metragem também tem por trás ajuda do Red Sea e da Netflix na distribuição e exibição.
“Jeanne du Barry” é um típico filme de época e imprime a estrutura desse novíssimo cinema francês em evocar elementos característicos mais orgânicos, mais bucólicos e de tom de naturalismo existencial das referências das obras clássicas com o toque moderno de um contemporâneo importado e de alteração costumeira, em uma grande liberdade poética da criação. Aqui, nós experimentamos uma narrativa de realismo mais emocional ao tratar de forma coloquial a aristocracia Real. Outro ponto usado dessas referências é a narração que pontua explicações do passado, que definem subjetivamente o que vemos, pululada de adjetivos, substantivos e figuras de linguagem. Essa naturalidade vive plenamente a liberdade sem pudor sobre nudez, erotismo, necessidades sexuais e inclusive procedimentos ginecológicos. Ah, os franceses! Há libertinagem, cortesãs, e “amor e negócio” de uma “puta ignorante”, que “aceitam” a violência desse Rei “magnânimo” que manda em tudo.
Sim, este também é um filme de ensaio ao feminismo. O objetivo de sua realizadora é tirar Jeanne, nossa protagonista, das sombras. E dar voz, atitude e respeito a essa mulher “escondida”. E retirar os “protocolos para transar”. Ela precisa vivenciar essas formalidades em rotinas diárias e surreais (de tão ridículas, ilógicas e envergonhadas). “Jeanne du Barry” quer a crônica-crítica pela repetição, como se traduzisse um teatro de movimentos, mais parecidos com a de um circo. O Rei tem o dever de seguir essas tradições. E ela, quer revolucionar tudo com as ações mais básicas da vida, de “olho no olho” (“ver é um convite”). O filme é uma sequência de cenas que mostram essas “esquisitices”, exotismos e excentricidades retrógradas. A arrogância da corte por exemplo nos lembra de “Cinderela”, em que um Walt Disney, ainda que burguês, alfinetava a sociedade “de manada”. E sim, não há como negar que imediatamente o filme “Uma Linda Mulher” nos vem à cabeça.
O roteiro de “Jeanne du Barry” quer ir além. Não só contar a história de Jeanne Vaubernier, uma mulher da classe trabalhadora determinada a subir na escala social, que usa seus encantos para escapar de sua condição de pobreza, mas também, especialmente, quer abordar questões tabus-históricas, como o racismo estrutural e uma única criança preta no reino em paralelo; e/ou como a desconstrução de gênero ao se “vestir como um homem”, para voltar à questão principal: a troca do brilho deles e o “divino mistério da Lua”. Pois é, ao escolher o romance, o ritmo se perde. Sim, esta é uma obra de muitos paradigmas, de muitos pontos de vista e de muitas questões sociais. Ao optar por querer questionar tudo, “Jeanne du Barry” cai na armadilha do tentar abraçar o mundo. E assim, desequilibra-se. Inevitável também não lembrarmos de “A Favorita”, de Yorgos Lanthimos, e ou “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, e/ou até mesmo o novo filme de Karim Aïnouz, “Firebrand”, que está na mostra competitiva aqui em Cannes (mas que precisará esperar, visto que sua exibição é mais para o meio do festival). Sim, e de uma hora para outro, a narrativa muda tudo. Fica sentimental. Parece que outro filme começou sem ter acabado o anterior. Nesta fase, quer chocar o reino e o espectador. Pois é, não foi desta vez Maïwenn que você conseguiu seu final apoteótico. Mas vamos ser sinceros! Isso é apenas uma rachadura dentro de uma obra muito bem construída.