Jay Kelly
O Homem Ordinário do Cinema
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2025
“Jay Kelly”, dirigido por Noah Baumbach, é um filme que se propõe a um duplo movimento: por um lado, é fácil de entender, estrutura simples como reza a tradição hollywoodiana. Por outro, aposta num astro de cinema no auge da glória, mas envelhecendo: interpretado por George Clooney, Jay Kelly está começando a experimentar uma crise de confiança em relação às suas escolhas – profissionais e pessoais. A insegurança de Kelly contamina a narrativa, gerando situações de humor, de um ligeiro drama, sem comprometer o encaminhamento da história, mas instalando uma certa dúvida nas certezas que se espera do protagonista.
Logo de saída, um plano-sequência de cinco minutos insere o espectador em uma grande produção cinematográfica, com sinuosos movimentos de câmera e luz intensa e variada (“Jay Kelly” foi rodado em 35mm). É a última cena de Jay Kelly, a estrela, e é uma cena de morte. Jay tem 60 anos, esbanja segurança e sorrisos, parece imune a críticas. Algo paira no ar, ele está prestes a mergulhar em um período de crise em sua vida privada. Na saída do estúdio, seu empresário protetor e fiel, Ron Sukenick, encarnado por Adam Sandler – dá a notícia: o diretor que lhe deu a primeira oportunidade no cinema, Peter Schneider (Jim Broadbent), acabara de falecer.
Jay chamava o mentor de “pai”. Sua carreira, entretanto, decolou, enquanto Schneider ficou estagnado no competitivo mercado de produção – não muito tempo antes, ele tinha implorado a Jay para usar seu nome a fim de alavancar financiamento. Jay recusou. Recusou dar uma última chance ao diretor que tinha dado a ele, Jay Kelly, a grande chance da vida. No funeral encontra um antigo room mate, Tim Galligan (Billy Crudup), um talentoso aspirante a ator e agora psicólogo infantil. Segue-se um drink entre velhos amigos, que descamba para um briga: Você roubou minha audição e minha namorada, que, aos vinte e três anos, era praticamente tudo o que eu tinha.
Foi nessa audição, convocada por Schneider, que Jay conseguiu seu primeiro papel, aproveitando-se da insegurança de Tim. O entrevero com o antigo parceiro, junto à culpa em relação ao seu primeiro diretor, terminam por precipitar os rumos do filme. Jay força mudanças bruscas na agenda, a qual, pode-se imaginar, é absolutamente ocupada por filmagens e publicidade, restando pouco tempo para a família – no caso, uma filha Daisy (Grace Edwards), que mora com ele, e Jessica, filha de um primeiro casamento, com quem tem uma relação complicada e distante. Daisy está prestes a viajar para a Europa com as amigas antes de ir para a faculdade. Em cima da hora, Jay decide ir também para a Europa, sem o conhecimento da filha, com o pretexto de receber homenagem em um pequeno festival em Toscana, Itália. Era um evento que Ron havia se esforçado para organizar e que Jay havia recusado repetidamente.
A viagem de trem de Paris a Toscana proporciona as melhores sequências de “Jay Kelly”. Fugindo de seus problemas, passados e presentes, Jay exulta ao encontrar-se com uma legião de admiradores comprimidos no vagão do trem, inclusive Daisy e sua turma. Ele se mistura com o público de uma forma muito mais espontânea do que normalmente faria em sua vida reclusa de celebridade. Méritos para direção e equipe, que elaboraram um cenário fluido e divertido – basta assistir ao “making of” do filme, também disponível na Netflix, para ter uma ideia do esforço, e do custo, da realização.
Nessa descida ao plano da “realidade”, Jay é acompanhado pelo escudeiro Ron – outro ponto positivo do filme é a interação entre os dois atores, Clooney e Sanders. Ron resolve situações antes mesmo de que Jay se dê conta do que se passa. Mas o sacrifício de sua vida pessoal – ele é intensamente ligado à família – cobra um preço. Enquanto isso, Jay não dá o devido valor a Ron e, durante uma discussão, afirma que o que Ron faz é apenas suficiente para receber a comissão padrão de 15% sobre seus ganhos.
O diretor Baumbach descreve “Jay Kelly”, não sem um certo exagero, como uma celebração do cinema e da criatividade. Trata-se de uma comédia com pequenos entreatos melancólicos. Foi lançada, de forma bastante limitada, nas salas de cinema, a fim de cumprir o regulamento e poder ser inscrita em festivais. No momento em que a Netflix prepara-se para adquirir a Warner Bros., esta é mais uma indicação da morte do cinema, pelo menos em sua versão de meio de comunicação de massa melhor apreciado coletivamente nos cinemas.


