It – Capítulo Dois
Iti Malia!
Por Jorge Cruz
Ousadia sem alegria. “It – Capítulo Dois”, a segunda parte da adaptação da obra de Stephen King, nos revela uma lapidação estética que tira a sensação de playlist de cenas de terror bem pensadas e executadas. Por outro lado, dobra a meta ao propor o desenvolvimento de sua história ao longo de quase três horas. Há pontos que merecem ser debatidos exatamente nesse aspecto, tanto mercadológico quanto de recepção do público.
Se em “It: A Coisa” saltava aos olhos a alegoria criada a partir de um tema, qual seja, o fim da infância do Losers Club, nessa continuação o roteirista Gary Dauberman (também responsável pelos textos da franquia “Annabelle”) tenta se aproximar do espírito da obra de King, que precisa qualificar, motivar, desenvolver quantos personagens ele entende necessário para que o impacto da história seja atingido. Com o dobro do orçamento da primeira parte, o diretor Andy Muschietti (Mama, 2013) teve mais liberdade para entregar o produto que imaginava. O sucesso do original em 2017 também atraiu grandes atores para o novo projeto, em especial Jessica Chastain e James McAvoy. Mesmo com o público louvando as desventuras de Pennywise, a crítica recebeu com frieza a obra. Muitos entenderam que as cenas de terror eram esteticamente bonitas, tanto que a sequência de abertura, com Georgie brincando com seu barquinho de papel vestindo uma capa de chuva amarela, já faz parte da iconografia do cinema desta década.
A escolha dos realizadores de “It – Capítulo Dois” foi a de não enxugar onde não precisa. Por isso, o primeiro ato do filme é quase um prólogo. Nele é mostrado sem pressa onde cada um dos integrantes do Losers Club está. O empresário Ben, o comediante de stand up Richie, até que todo o leque de personagens seja aberto e o quebra-cabeças formado para o espectador. Para Beverly (Jessica Chastain) é reservado um momento especial, no indicativo de que muito do que sofremos quando criança volta a nos assombrar quando adultos. No caso dela, o fantasma do abuso – se antes por seu pai, agora pelo marido. Se todos os homens do grupo não encontram obstáculo para o reencontro da turma 27 anos depois, Bev tem essa autonomia usurpada pelo machismo. Logo ela, a mais sensitiva deles.
Toda uma ordem de transições necessárias não afetam o ritmo da trama. Com uma parte considerável do longa-metragem fornecendo informações, o dinamismo é atingido. A direção de Muschietti abusa das elipses, como no lindo plano detalhe na aliança abandonada por Beverly para representar seu abandono de lar. Como o elemento comum a todas aquelas pessoas é a cidade de Derry, podemos considerar a reunião deles o ponto de partida. Porém, incomoda no conjunto de quase seis horas que se tornou “It” a sucessão de informações tidas como relevantes que jamais participarão da grande metáfora no clímax tão engendrado. Estamos nessa alegoria da criação de demônios interiores a partir de bullying da infância que se tornarão desvios de conduta ou dificuldades de relacionamento quando adultos. Porém, é tão fácil a assimilação, é tão palatável ao espectador essa possibilidade, que essa escalada promovida pelos dois filmes vai além da fidelidade da obra literária, se torna uma maneira de ganhar pelo cansaço.
Para o mercado cinematográfico, um longa-metragem de três horas de duração gera uma contabilidade bem penosa. Se a sala de cinema costuma realizar quatro sessões do filme por dia, dessa vez será possível apenas três. Ou seja, manter a taxa de ocupação das salas igual ao filme original levará a uma bilheteria 25% menor. Aqui mora a ousadia dos realizadores de “It – Capítulo Dois”. Seu ideal de grandeza lembra até o segundo capítulo da trilogia “O Poderoso Chefão”, devendo perdoar a heresia pela menção. Mas é comparável a criação de duas linhas do tempo, com um desejo em ser épico que vincula as duas obras (a de Francis Ford Coppola de 1974 e essa de 2019) à Era de Ouro de Hollywood, que apresentava ao público produtos bem longos, quase como se um arco gigante de história fosse imperativo para que se provocasse a sensação de algo grande. Claro que no caso de “It” é também a chance de explorar o sucesso do elenco infantil ao máximo.
Esse comichão de se construir uma obra de tal monta costuma afetar grandes nomes do cinema. Oliver Stone e Steven Spielberg levaram como “projetos de vida” pedras fundamentais dos anos 1990 como “JFK – A Pergunta que Não quer Calar” e “A Lista de Schindler”; assim como em 2007 David Fincher obteve êxito ao levar “Zodíaco” para a tela grande. Porém, o quanto esse “It: Capítulo Dois” pesará contra ou a favor da carreira de Muschietti será respondido ao longo dos próximos anos. Interessa mais entender o porquê de grandes lançamentos de 2019 ganharem vida com cortes finais de três horas ou mais de duração.
É possível que seja mera coincidência “Vingadores: Ultimato”; “Era uma Vez em… Hollywood” e “O Irlandês” se juntarem a “It: Capítulo Dois” nessa lista; mas pode não ser. Assistir ao longo desenvolvimento dos ataques sádicos de Pennywise na sala de cinema, dentro de uma experiência coletiva que lhe exige atenção total, pode ajudar a responder porque produtos audiovisuais tão descartáveis são lançados diariamente. O compilado de cenas que formam “It”, nas mãos de um serviço de streaming como a Netflix, que descobriu o segredo do sucesso provocando o processo de binge watching em seus espectadores, engrossaria tanto o caldo que provavelmente o livro de Stephen King se desenrolaria nos treze episódios tradicionais. Basta lembrar as adaptações da série “Desventuras em Série”. Porém, quantos minutos desses treze episódios a pessoa, de fato, assistiria? Quanto da nossa percepção do produto tem a atenção dividida com o telefone celular, a conversa com quem está do lado?
Por essa forma de se produzir que a experiência em “It – Capítulo Dois” pode ser tão reveladora. Vá ao cinema e entenda como ali você precisa estar concentrado em todas aquelas histórias. O filme possui essa narrativa serial, de fato. O drama dos personagens faz mais sentido do que o acúmulo de cenas esteticamente impressionantes (porém vazias) do capítulo um. Saem as infinitas tomadas por meio de drones, entra uma direção pé no chão, flutuando apenas o necessário para que seja revelado o próximo passo. A extra corporalidade, quando a experiência cabe, é retratada de forma a construir um vínculo afetivo do personagem com seu passado. Mesmo que aquelas pessoas sejam (e sempre serão) losers, incapazes até mesmo de perceber a grandeza de seus atos ao superar seus traumas, ainda torcemos por elas.
Em uma época onde “Os Mercenários” fez algum barulho e Harrison Ford voltou a seus personagens mais famosos na terceira idade, não seria impossível um novo “It” ambientado vinte e sete anos no futuro. Talvez o ego de King não permita que essa franquia siga adiante, mas o mercado é o dono da razão. A ousadia de romper a barreira de “filme em formato de série” e lançar nos cinemas uma “série em formato de filme” pode gerar barulho ainda maior do que a produção de 2017. Porém, pode ser um fracasso, mesmo que não retumbante.
O equívoco do longa-metragem de origem parece ainda maior quando assistimos a “It – Capítulo Dois”. Um filme sobre nossa incapacidade de mudar o passado e o peso de nossas culpas. Equilibrado, faz um terror espaçado, mas envolve seus acontecimentos em conectores mais convincentes. Mesmo assim, nos questiona mais sobre a forma como consumimos um produto como este do que sobre os dilemas da vida que ele parece solidificar, mas nunca, de fato, perfura.