Intruso
Antro(pologia) da Família Tradicional Brasileira
Por Jorge Cruz
Uma balança da Justiça gigante em uma mesa de canto na sala nos revela que “Intruso” fará concessões à lógica para passar sensações ao espectador. A premissa simples se desenvolve muito bem em um filme acerca do antinaturalismo das relações familiares. O roteiro nos coloca na casa Joel (Genésio de Barros) e Virna (Lu Grimaldi), casal que recebe seus filhos, cunhados, noras e netos para uma temporada. A motivação é a chegada de um Intruso (Eriberto Leão), espécie de entidade que julgará as atitudes e comportamentos daquelas pessoas.
Há algumas regras que deixa aquela família incomunicável, como falta de sinal de telefone e proibição de sair de casa. Aos poucos recebemos a informação de que outros humanos (se não todos) receberam intrusos e que puderam escolher previamente o local onde passariam por essa espécie de auditoria moral. Um diálogo com o espectador fundamental para a apreciação da obra, já que muitos de nós escolheríamos da mesma forma a casa dos nossos pais e nos arrependeríamos profundamente disso. O mesmo expediente antropológico que vem gestando grandes filmes como “Midsommar: O Mal não Espera a Noite”, mas dessa vez a partir do terreno arenoso do ambiente familiar, aquele que muitos são obrigados a frequentar presos a convenções sociais cada vez mais injustificáveis.
A interpretação falseada, não-naturalista de todo o elenco é um ponto que poderá afastar do público de “Intruso” parte de sua mensagem alegórica, visto que a crítica tem passado por esse processo. São frases declamadas com um cuidado na correta e completa pronúncia das palavras, mas de maneira que isso não descambe para a caricatura. A ficha técnica revela que Karla Muga, intérprete de Ana – nora de Joel e Virna – cumpre a função de produtora de elenco. Reunindo nomes experientes da televisão brasileira, como Leão, Grimaldi, Danton Mello e Juliana Knust, a forma como os atores se expressam não merece ser vista como falta de qualidade técnica e sim um reflexo direto da hipocrisia da maioria das interações familiares. Um ambiente que geralmente vive de aparências, com civilidade e respeito fundados nas relações sanguíneas, ignorando profundas diferenças em prol da família.
Por isso o Intruso se deliciará com tanto julgamento moral a ser feito naquele grupo. A cena inicial, em que a situação é constrangedoramente colocada na sala de estar, é quebrada quando os “homens da família” insistem que devem todos comer, ignorando o risco de morte inafastável. A câmera do diretor (e roteirista) Paulo Fontenelle tem um trabalho interessante de abordagem. Uma tremedeira constante nas situações de tensão, de incômodo dos personagens – não necessariamente causado pelo thriller. É possível que na presença do antagonista não haja sequer movimento, dada a tranquilidade e certa paz que a interpretação de Eriberto Leão traz. Fica a torcida para que “Intrusos” seja o início de uma sequência de boas produções de Fontenelle, que também montou a obra. Um trabalho de guerrilha, que soube selecionar cirurgicamente nomes para compor o elenco e um trabalho de direção de arte que, mesmo não sendo complexo, passa as mensagens que precisam passar. Se há de sua parte uma tentativa de se testar, construindo novos elementos e linguagens para a continuidade de sua carreira, o longa-metragem se revele bastante eficiente sob essa ótica.
O texto aborda ótimas questões como a culpa sobre suas frustrações que os filhos colocam nos pais, que eles sabem que precisam ser controladas e não verbalizadas naquele “juízo final” que se apresenta. Porém, tratar de relações familiares é viver no limite, pisando em ovos a cada olhada de lado que um parente te dá. Mesmo recebendo gritos e humilhações, os pais tratam – e chamam – o filho de menino, de criança, denotando a condescendência que o descendente não lhe oferece. Nesses momentos de crise, de verdades sendo ditas, aquele não-naturalismo das interpretações se rompe, permitindo ao espectador confiar na boa técnica do elenco bem sintonizado.
Além disso, a inclusão de elementos da trama aos poucos faz com que o público transite por um terreno de ignorância que move de certa maneira nossa curiosidade. Os elementos de gênero são usados com parcimônia, como as sombras e reflexos no espelho. Essa levada quase minimalista talvez faça com que o longa-metragem não angarie tantos adeptos do terror psicológicos. Em uma época de grandes obras dessa natureza, é possível que “Intrusos” fica perdido no bombardeio de lançamentos – o que seria de se lamentar. Ao classificar a família tradicional brasileira como um núcleo habitado por individualismo e hipocrisia, se qualifica como mais um bom título do cinema nacional a chegar ao circuito em 2019.