Inocência Roubada
Uma obra de extrema importância
Por Pedro Guedes
O pedófilo pode estar em qualquer lugar a qualquer momento, pronto para fazer uma vítima. Não dá para saber de onde vêm o maníaco sexual, pois este é frequentemente capaz de se infiltrar na sociedade a ponto de tornar-se indistinguível – e é por isso que, quando os pais descobrem que seus filhos foram vítimas de pedofilia, uma reação muito comum é a de total surpresa (junto ao choque, é claro), pois nem sempre é de se esperar que… digamos, um amigo de longa data e de extrema confiança seja capaz de atacar uma criança.
Aliás, muitas vezes a própria criança é incapaz de identificar o abuso que sofreu, percebendo ser vítima de um crime sexual anos após o acontecimento em si (esta discussão, inclusive, voltou à tona no começo deste ano, quando o documentário “Leaving Neverland” apresentou relatos de dois adultos, Wade Robinson e James Safechuck, que afirmavam ter sido abusados por Michael Jackson quando ainda eram pequenos).
Co-dirigido, co-escrito e estrelado pela estreante Andréa Bescond, o francês “Inocência Roubada” foi exibido na última edição do Festival Varilux e, poucas semanas depois, estreou discretamente no circuito brasileiro, não chegando sequer a receber uma cabine para a imprensa daqui. E isto é uma pena, pois um filme como este teria muito a acrescentar em uma discussão importante como a que “Leaving Neverland” suscitou (como identificar um pedófilo e como suas vítimas carregam cicatrizes para o resto da vida). Revelando-se um legítimo estudo de personagem, o longa se concentra em Odette, uma mulher que, aos oito anos de idade, foi abusada por um amigo de seus pais que a convidou para uma “brincadeira” de “cócegas”. A partir daí, avançamos no tempo e reencontramos Odette como uma adulta que vive tentando resolver os traumas do passado, conversando com uma psicóloga enquanto revisita constantemente diversos momentos importantes de sua vida.
Não dá para saber, no entanto, até que ponto “Inocência Roubada” reflete algo que realmente aconteceu com a própria Andréa Bescond – e embora ela negue se tratar de uma autobiografia, o fato de co-dirigir, co-roteirizar e estrelar o projeto me leva a deduzir que os temas abordados aqui são de extrema importância pessoal para a realizadora. No mínimo, uma farta pesquisa deve ter sido feita antes do início do projeto, já que os vários detalhes mostrados ao longo da narrativa constituem um quadro psicológico complexo, porém verossímil, não sendo surpresa, portanto, que os obstáculos enfrentados por Odette sejam comuns na vida de muitas vítimas de pedofilia. Em outras palavras: mesmo acompanhando uma única protagonista, “Inocência Roubada” talvez reflita o perfil de muitos indivíduos que sofreram abusos na infância, tornando-se uma obra importantíssima em função disso.
Mostrando a personalidade de Odette ao longo de várias etapas de sua vida, o filme estabelece objetivamente a inocência que a protagonista tinha quando ainda era criança – algo que a pequena Cyrille Mairesse ilustra através de expressões suaves e sonhadoras, como se vivesse num mundo particular e bem mais suscetível a devaneios. Isto, inclusive, permite que Bescond e o co-diretor Éric Métayer criem sequências lúdicas que, além de bem-vindas, funcionam por nunca fazerem questão de explicar para o espectador o que está acontecendo de fato, como aquela onde Odette vai apresentar uma dança no palco e começa a flutuar diante de seus colegas (sim, flutuar!).
Assim, a inocência que dá título ao filme torna-se inquestionável, sendo bem representada pela figura da menina Odette – e isso só faz a tal “brincadeira de cócegas” soar ainda mais chocante e destruidora, acabando de uma vez por todas com a pureza da garotinha. É importante destacar, ao mesmo tempo, que Bescond e Métayer tomam cuidado para nunca enfocar o ato em si de maneira irresponsável ou sensacionalista, mostrando apenas o pedófilo levando Odette para dentro de um banheiro, fechando a porta e terminando por aí. Há, portanto, um cuidado para evitar qualquer tipo de mau gosto.
A partir daí, Odette se transforma numa adulta sem muito percurso na vida, entregando-se a ações completamente destrambelhadas, perdendo-se em meio a relacionamentos com pessoas que não a levam para bons caminhos e vendo-se cada vez mais distante da menina serena e cheia de potencial que era quando criança. Se antes Odette era uma pequena sonhadora, agora ela é uma jovem que senta na garupa de uma moto e dispara em alta velocidade gritando “Vamos em direção aos nossos sonhos de infância!“, mas sem nunca saber aonde encontrá-los.
E isto encontra ecos na própria estrutura da narrativa, que, buscando refletir o caos que se passa na cabeça da protagonista, apresenta-se como uma das decisões mais ambiciosas de Bescond e Métayer ao longo da obra inteira – e o trabalho da montadora Valérie Deseine também deve ser destacado: adotando uma cronologia não linear que acompanha a ordem dos relatos de Odette no presente (afinal, ela passa a maior parte do tempo relembrando vários fragmentos de seu passado enquanto conversa com a psicóloga em seu consultório), o filme revela-se corajoso ao não entregar para o espectador todas as informações de maneira fácil e simplória, dando-se ao luxo de brincar com a lógica de diversas cenas (há momentos, por exemplo, onde a Odette do presente chega a invadir o espaço de algumas de suas memórias).
Além disso, o roteiro de Bescond e Métayer demonstra inteligência ao reconhecer que a personalidade rebelde da protagonista possivelmente deu origem a um senso de humor sarcástico, como se Odette frequentemente usasse o deboche como um mecanismo de defesa – ao fazer piadinhas com o que está ao seu redor, a jovem consegue manter distância do mundo responsável por tê-la traumatizado na infância.
E quando chega o momento em que Odette é obrigada a confrontar seus fantasmas do passado, percebemos o quão difícil é, para uma vítima de pedofilia, falar abertamente sobre suas dores internas – afinal, sempre que uma pessoa denuncia um abuso, surge também um insensível disposto a chamá-la de “mentirosa”, “oportunista” ou “maluca”, tratando a vítima como culpada e demonstrando crueldade em sua reação. Não é surpresa que o próprio pedófilo faça a mesma coisa, tentando se defender das acusações alegando que as crianças que atacou “queriam ter uma relação com ele“, como se tudo tivesse sido consensual (e como se isso tornasse a pedofilia menos condenável).
No fim das contas, Odette terá que carregar cicatrizes para o resto de sua vida – e foram estas cicatrizes que destruíram a inocência que preservava em sua infância, atirando uma menininha cheia de potencial em um mundo hostil, imundo e ameaçador. A dança, em especial, se transforma num meio que Odette encontrou de tentar um novo contato com o mundo, saindo-se bem em seu esforço de usar a Arte como mais um mecanismo de defesa. Mas as feridas são permanentes. E é por isso que é importante que exista um filme como “Inocência Roubada”: para mostrar para a sociedade que o perigo está sempre à espreita.