Inflatable Sex Doll of the Wastelands
A boneca inflável e os alucinógenos: "pinku eiga" para profissionais
Por João Lanari Bo
Mubi
A fantasia é, portanto, um dispositivo cognitivo cuja aptidão é criar zonas de indistinção entre ficção e realidade (Christine Greiner)
Suponha o leitor um filme que exala um aroma alucinógeno, extático e inebriante: adicione um formato wide screen, preto/branco e alto contraste; imagine uma reiterada e hipnótica disjunção entre som e imagem; e bata o martelo com uma trilha jazzística atonal e incendiária, mesclada no início e no fim com uma narração grave teatro Nô. Claro, tudo isso para contar uma história de rapto e tortura, servidão e perfídia, desejo lancinante e misoginia sublimada: “Inflatable Sex Doll of the Wastelands ” é o título da película, dirigida pelo obstinado Atsushi Yamatoya em 1967, uma das pérolas do “pinku eiga”, um modo de fazer cinema que vicejou nos anos 60 e 70 no Japão – espécie de laboratório nucleico de sexualidade e política, corpos em metamorfose. Também conhecida por “Esposa holandesa do deserto” – “holandesa” como sinônimo de boneca – ou, tout court, “Boneca de Horror”, a pérola reapareceu para os amantes do cinema “pinku”, lapidada e restaurada, no MUBI.
E não são poucos os que se alinham a essa população de aficionados: nos seus momentos de pico, o “pinku” abocanhava quase a metade da produção audiovisual japonesa. Hoje é um segmento cult, com seguidores fiéis no arquipélago e resto do mundo. Intercalado entre a penetração da TV no final dos 50 – mudaram os hábitos (e demandas) da audiência, os grandes estúdios se esfacelaram, o circuito cinematográfico nunca mais seria o mesmo – e a irrefreável maré de liberação político-sexual dos anos 60, o “pinku” ocupou o mercado underground e logo chegou ao mainstream: no competitivo ambiente de produção do Japão, o pique dos realizadores é vertiginoso, os experimentos de linguagem são testados no calor do mercado. Um exemplo conhecido no Ocidente é o profícuo Seijun Suzuki, que dirigiu dezenas de produções até chegar ao radical “A Marca do Assassino”, um dos melhores filmes da história do cinema, lançado em 1967, quatro meses antes de “Inflatable Sex Doll of the Wastelands ”: os dois são consanguíneos estéticos (Yamatoya é um dos roteiristas do clássico de Suzuki). Essas e outras histórias alimentam o notável compêndio de Jasper Sharp, “Behind the pink curtain: the complete history of Japanese sex cinema”, indispensável guia nessa viagem ao subterrâneo do desejo em terras nipônicas.
Mas, como decodificar a alma de um pistoleiro? E como imergi-la no alto contraste e sadomasoquismo do cinema “pinku”? Yamatoya respondeu com um enredo lapidar: em um deserto árido, o assassino de aluguel Sho é contratado pelo agente imobiliário Naka para rastrear sua amante sequestrada, Sae. O único vestígio dela é um arranhado celuloide de 8 mm, onde aparece nua e maltratada pelos abdutores. A jornada de Sho no submundo das paisagens urbanas oníricas leva ao encontro do líder da gangue, Ko, que foi responsável pelo assassinato de sua própria namorada cinco anos antes. Mas, não se enganem: tal como na abrasiva trilha do pianista Yosuke Yamashita – um dos grandes do free jazz no Japão – estamos a léguas de distância da linearidade confortável; cortes e saltos espaço-temporais imprevistos deslocam sucessivamente o percurso de Sho, às voltas com um bando de yakuzas atazanando o tempo todo. Um deslocamento que desequilibra o herói, em uma narrativa onde a lógica desinforma. A resolução é encenada em um galpão cheio de moscas e abarrotado de bonecas humanas em tamanho real. Como sugere Sharp, qualquer significado para tudo isso é altamente evasivo, mas, como no filme de Suzuki, há claramente algum método por trás dessa loucura.
Yamatoya estudou na prestigiosa universidade Waseda, em Tóquio, e ingressou no estúdio Nikkatsu em 1962 como assistente de direção: em 1966 saiu e foi trabalhar com Koji Wakamatsu, o devastador produtor e diretor, sexo e política em alta voltagem, antes de rodar “Inflatable Sex Doll of the Wastelands“. Uma das regras básicas do “pinku” são cenas de sexo a cada dez minutos (no máximo), sejam associadas à violência, à política, à história, ou a qualquer recurso dramático julgado oportuno. O boom econômico e tecnológico do Japão, a partir das décadas de 70 e 80, levou aos píncaros a fetichização do consumo. Hoje, o “mercado de afetos” no país – a expressão é de Beatriz Aoki e Christine Greiner – extrapolou as bonecas sexuais e aportou nos “robôs sexuais”, que “casam” com os clientes. Atsushi Yamatoya faleceu cedo, aos 55 anos em 1993, e não teve tempo de encarar esse desdobramento.