I Giganti
O sagrado solo
Por Vitor Velloso
Festival de Locarno 2021
Unindo drogas, álcool, filosofia e digressão, “I Giganti” de Bonifacio Angius é exibido em Locarno com muito a dizer e pouco a raciocinar. Na contramão da parcela industrial do cinema italiano, o filme é construído como um delírio do submundo, fugindo à representação clássica do naturalismo mais imediato e fragmentando as imagens, o longa parece um expurgo abstinente das cacofonias mais profanas do irracionalismo niilista e qualquer contradição categórica que existe aqui. De certo modo é divertido ver como a linguagem força uma confusão hiperbólica nos diálogos, saltando de um personagem ao outro como uma esquete televisiva, mas assumindo o fim desses personagens no confinamento sabático do abuso de drogas.
Se tudo parece praguejar os bons costumes dogmáticos, os berros na janela que ofendem uma procissão de passagem é a imagem que o espectador precisava para tomar consciência do deslocamento espaço-temporal da situação dramática, em todos os sentidos possíveis, da realidade e do sentido em si. Não há uma lógica presente aqui e “I Giganti” esbraveja contra a razão e ao lirismo fantástico, como um manifesto violento sobre o nada. É a resolução sintética do caráter lúdico que acomete parte da indústria europeia. As memórias são prisões que amaldiçoam seus personagens pelo martírio de suas fraquezas, covardias e abandonos. Sobretudo, é uma carta aberta aos que “falam que vão fazer uma coisa e acabam fazendo outra”. Sem saber ao certo o que ocorre na tela, o espectador não tem muito tempo para decidir se segue diante da projeção ou não, os oitenta minutos passam voando e conclusão alguma se tira.
Onde a comicidade reside como uma acidez particular que autoflagela a estrutura e seus personagens, a misoginia impera como desvio de conduta, um anexo da masculinidade frágil/tóxica. Mas esse ódio direto e nada velado, não parece ter uma justificativa além de um flashback tampouco lógico que se repete incessantemente. Uma luta frenética que atravessa a imagem em determinados momentos, os diálogos sem sentido, o ciclo da conversa que mantém a nota do “Lembra dela?”, “Quem?”, tudo força a obra ao irracionalismo à italiana, como uma espécie de iconoclastia moral das indústrias e instituições, sem necessariamente recorrer à argumentação. Como provocação, é pouco efetivo. Mas se a ideia era simplesmente confundir a cuca do espectador com uma série de fragmentos de ideias filmados com essa luz de preenchimento e uma montagem dinâmica que tenta gerar um humor fálico, funciona. Mas é barato.
Talvez não como objetivo primário, no impacto inicial, onde tudo em “I Giganti” se opõe ao classicismo tacanha. Barato porque abandonou tudo em uma grande bagunça, sem nenhuma intenção de resolução e esperava algum choque a partir disso. Essa provocação é um tanto fajuta, porém quando contextualizamos o filme na Concorso Internazionale, as coisas ficam um tanto engraçadas. Com “La Place d’une autre” dividindo a possibilidade de prêmio, temos os dois opostos funcionando na mesma direção. Por essa razão, e a falta da mesma no projeto de Bonifacio Angus (que roteiriza, produz, dirige, fotografa, monta e atua) é como um parque de diversões no purgatório do (ir)racionalista niilista. E a falta de precisão quanto à categorização, está na própria forma, que transita entre essa representação crua e rígida diante da realidade, onde a própria morte não escapa de sua frieza, e uma idealização do que esse encontro de amigos significa, tanto como expressão meramente pictórica como destino trágico de todos ao receber os créditos finais nos delírios de um drogado que impede a existência da culpa.
Só pode existir julgamento ou moral, quando a realidade se faz presente, na ausência dela, resta o tormento de lembrar que “as pessoas falam que vão fazer uma coisa e sempre fazem outra”. Um filme sobre o tempo? Uma resposta categórica à moral cristã? Um delírio? Resultado de fumar película vencida? Independente das intenções, “I Giganti” é uma das obras mais particulares exibidas até o momento em Locarno, sendo conformista ou revoltado, esses espaços ficam na mente por um tempo e o espectador sai “travado” de seus raciocínios.