House of Guinness

As vísceras do capitalismo

Por João Lanari Bo

House of Guinness

Não é de hoje que baixarias e rivalidades intrafamiliares ligados a poderosas corporações capitalistas são assunto das mídias em geral, particularmente na presente era do streaming. Quem viu “Sucession” testemunhou como a excitação do poder financeiro pode assumir ares de pantomima sado-neurótica – qualquer um que estivesse perto de Logan, o chefe do clã, corria risco permanente de destruição psicológica. Pois a mesma lógica que fundamentou esse, digamos, espetáculo, está na base da série “House of Guinness”, oito episódios que visitam as peripécias e contradições da família Guinness, proprietária da famosa cervejaria, na Irlanda da segunda metade do século 19.

Claro, estamos em outro momento histórico, ninguém fala no celular – item básico de comunicação em “Sucession”. Steven Knight, o criador de “House of Guinness”, alega que tomou emprestado alguns nomes e fatos reais, e carregou na ficção. Se o espectador curioso procurar na Wikipedia referências históricas, não deverá ter muito sucesso, advertiu Knight. O que é verdade tanto na realidade quanto na série é que, quando Sir Benjamin Lee Guinness morreu em 1868, deixou o controle da cervejaria para dois de seus filhos, Arthur e Edward. A leitura do testamento do patriarca os uniu, pelo menos na série: Arthur (Anthony Boyle), o mais velho, tem pouco interesse em administrar a cervejaria, enquanto Edward (Louis Partridge), é determinado e ambicioso em expandir o negócio, o que significa manter o poder e a reputação da família.

Um dos índices desse poder é uma cadeira na Câmara dos Comuns, que Sir Benjamin ocupava. Arthur, o candidato à vaga, guarda um segredo que pode arruinar o nome da família: ele é gay. Numa época de forte intolerância para comportamentos tidos como “fora da norma” – pesadas penas carcerárias eram a tônica – este era um assunto delicado para Edward, preocupado em abafar os casos amorosos de Arthur. Na vida real, as informações são vagas em relação a esse detalhe, que na ficção tornou-se um dos principais “plot points”. Arthur casou-se com Lady Olivia Hedges (Danielle Galligan), com quem – mesmo em se tratando de um casamento arranjado – manteve, ou teria mantido, uma relação de fachada, onde cada um seguia seus impulsos sexuais.

Edward também acompanha (e administra) seu irmão Benjamin (Fionn O’Shea), bêbado contumaz, e a irmã Anne (Emily Fairn), cristã piedosa que se envolve em um breve caso extramarital com o capataz da cervejaria, Rafferty (James Norton). Benjamin precisa se casar com alguém “respeitável” para melhorar sua imagem – mas não é a pessoa que realmente sente atração por ele. Anne ajuda a administrar os esforços filantrópicos da família, que envolvem construção de conjuntos residenciais para população de baixa renda, moradores em locais insalubres. Naturalmente, essas iniciativas funcionavam também como ferramentas para objetivos políticos. Nesse ponto a esposa de Edward, Adelaide (Ann Skelly), é instrumental: ela era, de fato, uma entusiasta da filantropia social.  Edward, sempre às voltas com tensões políticas entre católicos e protestantes, que assombrou a Irlanda durante séculos – e assombra até hoje, vide o que aconteceu até bem pouco tempo na Irlanda do Norte – casou-se com Adelaide também por uma questão de status social.

Na verdade “ficcional”, Edward estava apaixonado por uma personalidade do movimento feniano, Ellen Cochrane (Niamh McCormack). O movimento feniano surgiu no século 19, com forte perfil nacionalista, a favor da independência irlandesa da Inglaterra e, para arrematar, constituído por católicos (a família Guinness era do lado protestante). A ligação de Ellen e Edward é outro dos “plot points” que segura a trama e mantem a audiência ligada. As querelas entre os personagens trazem “House of Guinness” para um contexto político, que se revela um efetivo pano de fundo para apimentar a história. No geral, apesar de não ser historicamente precisa, a série é emocionalmente conectada com o espírito rebelde dos irlandeses. Para uma produção de época, esse aspecto torna o “espetáculo” indubitavelmente vivaz e energético.

Em 1867, um ano antes da morte de Sir Benjamin em Dublin, ninguém outro que Karl Marx escreveu longo texto sobre a “questão irlandesa” – Marx, como se sabe, viveu um longo período em Londres, a partir de 1849 até sua morte em 1883. Foi um período fundamental para o desenvolvimento de sua crítica ao capitalismo, que ele acreditava ter na experiência inglesa (e por tabela na Irlanda, colônia da Inglaterra) a vanguarda da história. Foi na capital inglesa que Marx se dedicou a extensas pesquisas, passando muitas horas na Biblioteca do Museu Britânico para escrever sua obra principal, “O Capital”.

O texto de Marx sobre a Irlanda não foi, infelizmente, publicado. Foi lido em Londres, numa reunião da Associação Educacional dos Trabalhadores Alemães, durante uma hora e meia. Não seria surpresa se o nome de Benjamin Guinness foi mencionado nessa ocasião.

4 Nota do Crítico 5 1

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