Horizonte
Díptico irregular
Por Pedro Sales
Festival de Cinema de Vassouras 2023
Quando morre Pedro, uma família se vê dividida em duas partes. De um lado, filho, nora e neta. Do outro, irmão e neto. Com um testamento minimamente estranho, estes são obrigados a dividirem o mesmo teto apesar dos eventuais desentendimentos. “Horizonte“, filme rodado em Aparecida de Goiânia e principal vencedor do Festival de Vassouras, explora, portanto, o drama familiar que se depreende de certo conflito pela herança. Pelo menos em um primeiro momento. Apesar disso, o longa de estreia de Rafael Calomeni nunca encontra o equilíbrio na pretensa direção naturalista e na tentativa de dramatizar as ações. Além dessa evidente incompatibilidade entre a condução pretendida e a encenação posta em tela, o filme é irregular. Divide-se como um díptico, em duas partes, que pouco dialogam no caráter dramático. A primeira metade, um drama familiar, a segunda, um romance pueril e ingênuo entre duas pessoas solitárias.
Rui (Raymundo Souza) morava com seu irmão, Pedro, e com seu sobrinho neto, Juarez Júnior. A morte de Pedro faz com que seu sobrinho, Juarez – o pai -, volte à casa como um dos herdeiros, relegando ao tio e ao próprio filho apenas o direito de morar no barracão dos fundos da casa. Mesmo com uma pretensa carga de imprevisibilidade de confronto em razão da herança, o filme jamais consegue de fato explorar todas as potencialidades do texto e seus possíveis conflitos. A única cena em que há de fato um confronto direto em detrimento de silêncios e afastamentos velados também não funciona. Isso se dá sobretudo pela incapacidade do diretor de naturalizar a ação. Os diálogos, no geral, soam artificiais e excessivamente expositivos durante toda rodagem, e as atuações funcionam em uma cadência mecânica.
A dificuldade de “Horizonte” em encontrar equilíbrio entre a abordagem naturalista em um tratamento de cor acinzentado com a dramaticidade inerente à situação pode ser observada desde o plano inicial. Em um plano-sequência de pouco mais de dez minutos, isto é, quando a cena é filmada em uma só tomada, os dramas contidos na morte e na discussão da herança jamais recebem o peso necessário. Além disso, em comparação com o restante do filme e a unidade estilística desenvolvida, a escolha de um plano longo parece apenas uma afetação formal, preciosismo vazio, uma vez que mesmo com o dinamismo visual, as imagens não evocam tais sentimentos e a espacialidade do quintal não é devidamente explorada. Portanto, há um desequilíbrio palpável no longa. De um lado, o cenário que remete ao naturalismo e por vezes a própria fotografia, com o uso de câmera na mão, ao passo que do outro há um texto engessado e uma direção com claras fragilidades, que poucas vezes alcança um grau de genuinidade satisfatório.
Se o drama familiar pouco tem de verdadeiro, a despeito das tentativas da direção, quando Rui, cansado da situação imposta a ele, procura outro lugar para morar e encontra Jandira (Ana Rosa), os sentimentos são construídos de forma mais verdadeira. Morando na Vila Horizonte, uma espécie de condomínio custeado por uma ONG para idosos abandonados e sem família, ele conhece sua vizinha. A relação entre os dois é desenvolvida por meio da música. Tocando a cada noite “Boneca Cobiçada”, de Milionário e José Rico, os dois se aproximam, na medida em que a rispidez dela deixa, e desenvolvem um laço sincero. Estas cenas são demarcadas por uma repetição constante. Por mais que a montagem encadeie essas noites de maneira a parecerem cenas redundantes, esse caráter evoca uma gradação na confiança entre os dois e uma certa paciência no romance. Totalmente condizente com o contraste que se dá entre a tradição e os costumes antigos dos dois e a vontade de aproveitar a vida na velhice.
Dessa forma, “Horizonte“, com essa irregularidade entre dois momentos que indubitavelmente bifurcam o filme em tons diferentes, encontra sua alma e sinceridade no romance idoso e pueril. As debilidades observáveis na direção, que são naturais para um primeiro trabalho atrás das câmeras, lidam diretamente com o roteiro de Dostoiewski Champangnatte e a forma como a transposição do texto se dá de maneira extremamente artificial em toda rodagem, até quando tenta evocar o naturalista e não só no dramático. Apesar disso, as atuações de Raymundo Souza, Alexandra Richter, Ana Rosa e Suely Franco não são tão impactadas por esse aspecto, como a de outros atores, e conseguem, talvez pela maior experiência, dialogar com o naturalismo da mise-en-scène. No geral, é um filme visivelmente irregular com alguns bons momentos e um trabalho de câmera interessante se não chamasse tanto a atenção para si. Talvez seja mais longo do que deveria nas muitas voltas que dá, repetitividade essa que esvazia o drama em um momento e torna-se fio condutor da relação dos personagens em outro.