Hora do Recreio
Vozes em performances reais
Por Fabricio Duque
Festival de Berlim 2025
É muito paradoxal o fato de estarmos em um mundo atual, que permite sem medos exercer e viver a liberdade, mas que conceitos retrógrados e limitadores (particularmente pela moralidade popular e religiosa) ainda estejam tão enraizados no imaginário social. Nesta contemporaneidade, as pessoas têm nas redes sociais, por exemplo, a melhor forma de expressar suas identidades, numa polifonia de vozes que expandem livre arbítrios, porém cada um ainda prefere se preocupar com a cor da pele e o tipo do cabelo do outro. Quando foi que começou a “predileção soberana” pelo “povo branco”? Por que ser uma pessoa preta fere a “estética” do olhar do outro? Essas e muitas outras questões são abordadas no novo filme “Hora do Recreio”, da cineasta Lúcia Murat, uma obra híbrida que coleta depoimentos de alunos, que performa histórias e que teatraliza, pelo hoje, o romance “Clara dos Anjos”, do escritor Lima Barreto, um “homem preto no início do século XX”.
“Hora do Recreio” apresenta-se como um veículo livre de escuta, entre a tempestade de ideias de jovens estudantes e a condensação de todos esses questionamentos à categoria de uma ensaiada Comissão da Verdade. O tema da liberdade é elemento focal (e vital) da filmografia da diretora. Lucia viveu na própria pele os horrores e torturas de ser uma presa política durante a ditadura, e tudo por apenas pensar diferente e por agir para ajudar a construir um futuro. Nesta obra, ao trazer as vozes desses alunos de escolas públicas, de 14 a 19 anos, nós percebemos que os comportamentos animalescos de antes, quase num nível de vida em cavernas, mantêm-se, provocando racismo, xenofobia, diferenças de classes sociais, homofonia, transfobia, violência contra mulheres. Se o mundo parece viver o futurismo tecnológico, nessas questões temos a impressão de que quase nada evolui. E que em alguns casos até retrocedeu.
O longa-metragem, exibido na mostra Generation 14plus do Festival de Berlim 2025, vencendo o Prêmio de Menção Especial do Júri Jovem, quer criar uma sensorial imersão ao que se ouve, permitindo ao espectador uma espaço de proteção, longe de julgamentos, que se complementa pela forma narrativa, muito característica de Lúcia, de estender a observação cotidiana, em cenas que prologam o próprio instante de nós que contemplamos. É como que o filme não quisesse cortar nossa percepção, esperando assim nossas conclusões. “Hora do Recreio”, ao iniciar e terminar com “A Música de Mãe”, da relevante voz em rap de Djonga e Coyote Beatz, junto à exposição de pinturas de pessoas pretas em situações do dia-a-dia, o longa-metragem quer nos conduzir por uma “jornada” de exclusão, de tiroteiro em comunidades, de “gente humilde”, “pobre, preta e favelada”. “Sejamos Mandelas e Racionais”, narra-se em rap enquanto o filme atravessa toda a cidade do Rio de Janeiro, em especial o bairro da Penha.
Como disse, “Hora do Recreio” quer escutar esses estudantes, mostrando contradições, “perrengues”, lutas constantes para sobreviver num mundo hostil repleto de integrantes alienados. Esses jovens, o futuro, encontram neste filme uma possibilidade de terapia cognitiva. Ao contar seus dramas, “histórias fortes” e violências sofridas, (colocadas em grupo), com eles e com suas famílias, libertam-se dos fantasmas, de seus algozes. Nós percebemos também que muitos ali ainda falam um português errado, mas praticamente todos precisam escolher entre trabalhar para comer e estudar. Sim, talvez esses seres, ainda em “processo de humanização” pelos outros, sintam mais a carga de viver num “universo de provas e expiações”. Isso tudo no simbolismo da hora do recreio, espaço temporal em que os alunos esperam uma aula ou outra, se alimentando para nutrir seus corpos.
“Hora do Recreio” é um espaço “refúgio”. Um espaço para colocar para fora tudo o que se pensa sobre tudo. Um espaço de análise indivíduo-social. Fala-se sobre questões da escola, sobre o abuso de poder dos policiais (especialmente dos homens pretos fardados que “se juntam aos brancos”). O filme também traz uma percepção extra. Ao incluir o híbrido e a metalinguagem do processo de realização (a equipe de filmagem se inclui e perguntam aos “atores” se o que estão fazendo é documentário ou ficção – como as mensagens de Whatsapp e as não autorizações),
“Hora do Recreio” encontra o melhor de Eduardo Coutinho, que é simular realidades, que permite inclusive o comparativo teatro contemporâneo, com suas expositivas máscaras em “missões protetoras”. Pois é, talvez a questão mais direta desta obra seja provocar perguntas retóricas que “abandonamos” com a velocidade da vida moderna: Quando foi que a aparência da pessoa preta se tornou um perigo? Por que a arrogância de inferiorizar o outro por causa do cabelo? Por que o ofender sobre o tipo de pente? Sim, como disse também isso é tão paradoxal. “Como um negro se parece?, explicita-se.
Assim, entre excursões de metrô ao Centro do Rio, idas as Centro Cultural Banco do Brasil, fotos antigas do bairro abordado, mais narrações em tom musical sobre “vitimismo” e “como são diferentes as oportunidades desses pretos favelados”. “Hora do Recreio” é sobre esses e tantos outros “ditames morais”, que Lima Barreto já colocou em seu último livro. Sim, esta obra é um sopro perspectivo de futuro, principalmente por encenar (modernizando a linguagem) a realidade passada, e assim gerar a conclusão não da desistência, mas sim da resiliência não “burra e cega”. “Isso tudo é uma questão social; nós não somos nada nessa vida”, finaliza-se. Pelo contrário, caro amigo preto: vocês são a alma da revolução que definirá os certos e os errados. E nós do morro.