Hammarskjold: Luta pela Paz
Descolonização
Por João Lanari Bo
Mostra de São Paulo 2024
“Hammarskjold: Luta pela Paz” é um “biopic”, esse gênero (ou subgênero) cinematográfico cada vez mais presente nas telas, focado nas últimas semanas do Secretário-Geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjold – que ocupou o cargo entre 1953 e 61. A era dos reality shows, que coincide com a era da internet, talvez tenha desencadeado um apetite renovado de sobredeterminação por parte dos produtores e cineastas: true crime, ou “inspirado em fatos reais”, são algumas das senhas que a audiência acostumou-se a identificar para agregar um surplus de veracidade à trama. A sensação de revisitar a cena funciona como dispositivo de sedução – sobretudo se envolve morte e mistério.
Um fenômeno sobredeterminado é aquele causado uma multiplicidade de fatores, causas ou variáveis, informa a Wikipedia – o conceito foi utilizado por Freud para se referir à série articulada de causas e fatores desencadeantes dos sintomas das neuroses e das diversas formações do inconsciente. No caso, a (re)visita refere-se ao embate político que Dag Hammarskjold empreendeu quanto ao processo de descolonização na África, em meio a um dos períodos mais intensos da Guerra Fria entre EUA e URSS. O mundo naquela época era turbulento – e hoje continua a ser – mas as Nações Unidas, vivendo uma complexa fase de maturação enquanto organismo multilateral, tinham uma presença muito mais marcante e decisiva do que tem hoje. Seu Secretário-Geral era um real ator internacional – atualmente é uma espécie de facilitador.
Logo no início de “Hammarskjold: Luta pela Paz” imagens de cinejornais em preto e branco retratam Dag como um intrépido negociador: frequentemente mediando entre David Ben-Gurion e Abdel Nasser, líderes de Israel e Egito; intercedendo junto à China para a libertação de 11 pilotos americanos capturados na Guerra da Coreia; intervindo na crise (e guerra) do Suez em 1956, criando pela primeira vez forças da ONU para manutenção da paz, composta de soldados de diversos países, inclusive Brasil. E, principalmente, vocalizando anseios dos países recém-independentes da descolonização pós-Segunda Guerra, em especial os africanos – um número grande de nações, em geral egressas de processos brutais de colonialismo, que se tornaram membros efetivos da ONU, com direito a voto e, também, proteção e apoio.
Esses são ingredientes para um thriller político, diria a sabedoria popular. Mas, não é fácil: Hammarskjold era, afinal de contas, um burocrata, eficiente e ativo, mas burocrata. “Hammarskjold: Luta pela Paz”constrói em paralelo um personagem, encarnado por Mikael Persbrandt, que alterna a intensidade do holofote de superstar global com a intimidade de um ascético e solteiro convicto – e, nas horas vagas, poeta. Não faltam alusões à suposta homossexualidade, mantida em um nível máximo de discrição, de Dag. Antes de partir para o Congo, naquela que seria sua última viagem, deixou coletânea de seus poemas, escritos desde o início da vida adulta na Suécia, com a permissão de serem publicados. Com apresentação de W.H. Auden, os textos, em estilo confessional e versos curtos, são sofríveis como literatura, mas valem como exposição de dúvidas e tormentos íntimos. Por exemplo:
O Caminho
deves segui-lo.
A felicidade,
deves esquecê-la.
O cálice,
deves tomá-lo.
A dor,
deves ocultá-la.
A resposta,
deves aprendê-la.
O final,
deves suportá-lo.
“Hammarskjold: Luta pela Paz” alterna entre cenas de Dag solitário em seu apartamento, na companhia do macaco de estimação Greenback, com as tratativas que se envolveu na descolonização do Congo. Aí, a barra pesou: o recente documentário “Trilha sonora para um golpe de Estado” trata sem rodeios os acontecimentos trágicos que cercaram a ascensão e morte de Patrice Lumumba, em 1961, eventos nos quais a participação de Dag Hammarskjold foi determinante – muitos o criticam por não ter sido enérgico suficiente e provido proteção a Lumumba. A crítica é cabível, mas não dá para ignorar que o Secretário-Geral estava àquela altura tolhido pelas superpotências: URSS, que exigiam às claras sua demissão pelas hesitações, e EUA, que o elogiavam publicamente, mas sabotavam no que podiam suas ações – Kennedy disse, depois da sua morte, que ele foi “o maior estadista do século”.
Per Fly, o realizador sueco que assina o filme, não esconde um pendor para entronizar Hammarskjold, herói nacional no seu país. Uma leitura mais equilibrada seria situá-lo como expressão dos limites da ONU nas relações internacionais: ele quis torná-la mais ativa e intervencionista, talvez indo além do que prevê a Carta da organização, e os países poderosos não permitiram. A sensação de impotência que emana da organização vem daí – ruim com ela, pior sem ela, parece ser seu destino. As guerras da Ucrânia e Gaza atualizam essa percepção diariamente.
Dag Hammarskjold pagou caro pelo ativismo. Sua morte, muito provavelmente articulada pela “Union Minière” belga com apoio de mercenários sul-africanos e omissão das grandes potências, é um dos marcos da brutalidade da descolonização africana.