Mostra Um Curta Por Dia - Repescagem 2025 - Novembro

Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe

A Sabedoria do Rosto

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2025

Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe

Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe”, filme de 2025 dirigido pela iraniana Sepideh Farsi, insiste numa imagem arrebatadora, o rosto de Fatima Hassouna, palestina de 24 anos, residente em Gaza. Durante quase um ano Sepideh ligou para Fatima, chamadas com vídeo, a despeito das dificuldades de conexão – e dos bombardeios e tiros. Idas e vindas da conexão funcionam como pontuação cinematográfica, connexion cortada (em francês: o celular da diretora é de Paris, onde mora) e retomada. O sorriso de Fatima preenche a tela, ilumina a tela. O rosto humano, dizem os cabalistas, é um mapa, reflexo físico da alma e local de revelação espiritual.

A linguagem é simples, direta: são dois eixos que se oferecem ao espectador: as ligações em primeiro plano; e imagens da devastação de Gaza, captadas com um olhar atento e expressivo, breves interpolações que contextualizam a cena. A fotógrafa é a própria Fatima: suas fotos, postadas no Instagram, conseguem a proeza de se diferenciar da massa de informação visual que (quase) banalizou a tragédia diária que se passa na Faixa de Gaza. Claro, Fatima não é a única testemunha que corre por fora do mercado de imagens efêmeras dessa guerra brutal, outras vozes também vieram (e vêm) à tona. Seu sorriso acolhedor, sem embargo, é único, desarma e prende a atenção do espectador.

A linha do tempo de “Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe” começa em 24 de abril de 2024, e termina 15 de abril de 2025. Sepideh Farsi, impedida de entrar em Gaza, conhece no Cairo um palestino refugiado, Ahmad, que passa o contato de Fatima. No mundo hiperconectado dos nossos dias, tomado por feeds e algoritmos, a imagem da Fatima rompe com a sucessão de fragmentos que concorrem para a impressão de realidade gerada por notificações e estatísticas, reportagens e breaking News, todos capazes de levar a ondas fugazes de indignação, mas desumanos. A comunicação entre sujeito e objeto do documentário – na falta de uma palavra que melhor defina o formato do filme – cria uma sensação de proximidade pelo uso familiar do dispositivo, humanizando o sofrimento da guerra.

Mas, hélas, Fatima é uma imagem, pura representação digital, formada por uma grade de pequenos quadrados chamados pixels – e a união desses pixels com suas informações de cor cria a imagem completa. À familiaridade dos gestos e falas, sobrepõe-se a impotência e, no limite, o entorpecimento. A rotina de Fatima é implacável – falta água, comida, a destruição cerca sua casa cada dia que passa, mas ela não desanima. Falar com Sepideh é uma intermitente evasão – seus olhos brilhem quando fala sobre seu desejo de visitar Teerã, Roma, Vaticano. São picos de alegria que suspendem o cruel distanciamento entre os pontos de fala. Ao saber que o filme foi selecionado para exibição no festival de Cannes – o áudio oscilou nesse momento – ela exulta: Sim, sim, eu conheço! À pergunta se gostaria de comparecer, não hesita: Claro!

Guerras, como sabemos, funcionam como vitrines de novas tecnologias – e a comunicação entre Fatima e Sepideh faz parte desse conjunto. Outras tecnologias, porém, são absurdamente letais: em 2021, Israel anunciou que as big techs Amazon e Google haviam vencido licitação de 1,2 bilhão de dólares para implantar centros para “nuvens” no território israelense, com o objetivo de alavancar a tecnologia local. Em principio destinada a dados da administração local, a finalidade da “nuvem”, ao que parece, favoreceu a implantação de um meticuloso sistema de reconhecimento biométrico, com a finalidade destruir e aniquilar alvos selecionados. A execução de Yahya Sinwar, em 16 de outubro de 2024, líder do Hamas tido como mentor do ataque de 7 de outubro de 2023, foi o ápice espetacularizado – e macabro – dessa tecnologia.

Fatima, sempre enaltecendo a capacidade de luta do povo palestino, não esconde um certo desapreço por Sinwar – muita gente aqui não gosta disso, não gostaram desta eleição. Por isso estão rejeitando Sinwar. É o único comentário político que faz. De resto, o diálogo flui, mesmo nos momentos de depressão – o sorriso, logo em seguida, volta a iluminar a imagem. E as bombas não param de cair.

Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe”, por fim, esgota racionalizações abstratas induzidas rumo a uma conclusão, ou mais uma conexão. O mundo de Fatima não é simbólico, é à flor da pele.

5 Nota do Crítico 5 1

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