Greta’s Anatomy
Por Filippo Pitanga
Durante o Festival Cine Ceará 2019
Talvez os cinéfilos brasileiros mais ferrenhos estranhem a correlação feita no título da presente crítica com o famoso seriado “Grey’s Anatomy” de Shonda Rhimes e o novo longa cearense “Greta” de Armando Praça, com Marco Nanini no elenco – o qual teve sua aclamada estreia internacional no Festival de Berlim no início deste ano, e que ora encerra a competição principal de longas íbero-americanos do 29º Cine Ceará com certo merecido favoritismo da casa…
Todavia, para além do cenário de fundo nos bastidores de um hospital que ambos possuem em comum, existe um histórico coincidente do binômio representatividade e representação que não pode ser negligenciado. Enquanto a série pop de Shonda foi se preocupando ao longo de 16 anos em lidar com questões de gênero e de raça, o filme de Armando demorou 10 anos para ser concretizado e pôde acompanhar e assumir fortemente para si as mudanças e necessidades LGBTQIA+ como ponto nevrálgico de sua representação. E não só, pois existe outra questão afirmativa muito pouco abordada no cinema brasileiro que o longa “Greta” dá um passo à frente: o envelhecimento com dignidade e com respeito ao desejo e potência da idade.
Pode parecer estranho a princípio usarmos Grey’s Anatomy para falarmos da sexualidade à flor da pele de “Greta” se a série possui um elenco predominantemente jovem e encaixado nos padrões normativos e hegemônicos de beleza, mesmo quando trata de personagens LGBTQIA+… Mas o fato é que as pessoas quando envelhecem também mantém a chama de seu desejo acesa e com desdobramentos de reconhecimento e apreciação desta bela sexualidade. Não costumamos falar do tesão e do erotismo de corpos no decorrer do tempo ao passarem de certas fases de amadurecimento. E esta é uma opção não apenas estética, como ética que o longa cearense assume com coragem. E não qualquer corpo mais velho, e sim especificamente o corpo gay e trans.
Afinal, qual lugar melhor para se falar sobre essa anatomia dos corpos de seus personagens, especialmente a anatomia sexual de Grey…quer dizer, de Greta, senão justamente dentro de um hospital? O lugar onde se lida com corpos todos os dias o tempo inteiro, corpos nus ou vestidos, fechados e abertos (por bisturis ou sondas), e uma frieza hospitalar no atendimento, de filas e filas de pacientes, que leva todos a sentirem certa curiosidade em relação a como estas pessoas fazem para relaxar e manter a sanidade nos intervalos.
Não à toa, “Grey’s Anatomy” não é a única série que lida ou lidava com os casos amorosos de suas equipes e pacientes, vide o antigo sucesso “E.R. – Plantão Médico” e a brasileira “Sob Pressão”. E “Greta” embarca nesta seara para falar de profissionais um pouco mais velhos do que o estereótipo tipicamente retratado, de modo que o personagem principal de um enfermeiro gay encarnado por Marco Nanini passa a ser o epicentro gravitacional deste cosmo, abrindo um novo referencial de naturalidade com o qual toda a tabula rasa do filme se guiará.
O argumento que serve como base para a história foi adaptado livremente a partir da peça “Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá” de Fernando Melo, sendo melhor dizer o mínimo possível para se evitar qualquer spoiler: Pedro (Marco Nanini) usa seu cargo como enfermeiro num hospital para soltar um paciente que estava preso à sua maca (Demick Lopes), a pedido do próprio, para liberar um leito e colocar sua própria amiga no lugar (Denise Weinberg). Entre iniciar os preparativos emocionais para talvez ter de se despedir da amiga em estado grave e passar por uma investigação policial para descobrir quem soltou o paciente que era suspeito de um homicídio, Pedro precisará lidar com o desejo recém aflorado pelo homem que libertou e a arriscada relação que isto pode lhe gerar.
Vale ressaltar que o nome do filme “Greta” advém por um fetiche específico do personagem de Nanini: ele assume uma faceta, um alter ego com o nome da saudosa atriz clássica: Greta Garbo — uma atriz da Era de Ouro de Hollywood, bissexual, indefinível e livre, acima de tudo livre.
Esta é a sinopse, sim, com certeza, mas de forma alguma encerra a história nem sua proposta, e muito menos a enorme expressividade técnica de linguagem com que passa a se afastar de vez de qualquer outra comparação com uma série televisiva comercial como “Grey’s Anatomy”. Afinal, o cinema brasileiro, aliás, mais do que isso, o cinema nordestino, e, no momento, mais especificamente a primavera cearense está na crista da onda do mundo inteiro.
“Greta” estreou ovacionado na Berlinale 2019. Isto sem falar que os filmes brasileiros selecionados nos últimos anos em Berlim costumam primar por avançar bastante as narrativas LGBTQIA+ e até costumam também sair de lá com prêmios Teddy (o prêmio do Festival para obras com esta temática).
A forma com que Armando escolheu contar esta delicada teia de desejos, ao lado do diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo, foi como um quadro barroco misturado com luzes de neon da vida noturna de uma Fortaleza alternativa. Existe um trabalho de iluminação que realmente nos leva a pensar na intimidade da luz com o corpo, um contato quase erótico a desbravar a privacidade do toque, e de que forma esses contornos funcionam a destacar a corporalidade de seus personagens em meio a enquadramentos mais fechados e ambientes internos. Quase pinturas em close. Marco Nanini nunca foi tão bem pintado como um Caravaggio em sua pele e poros.
Algo que se comunica muito com certo trabalho evolutivo e imagético de uma filmografia cearense em geral, como outro vulto de sucesso este ano que foi “Inferninho” de Guto Parente e Pedro Diógenes, o qual encerrou um ciclo de produções de um coletivo extremamente prolífico do Cinema Cearense chamado Alumbramento, mas que faz recomeçar novos ciclos como este “Greta” também prenuncia no horizonte. Duas obras com muito em comum nos avanços de estética Queer, bem como alguns artistas reprisados nos dois elencos (Demick Lopes), ou também elementos visuais tipo as músicas de cabaré decadente chique, ou os casais apaixonados e separados por dívidas e crimes… tudo regado à uma iluminação quente e multicolorida em ambas as obras.
Esta impressão tão pessoal da derme vem acompanhada no roteiro de uma corajosa sensualidade e erotismo, pois as cenas mais ousadas de nudez e sexo existem como declaração existencial e identitária, ainda mais nos tempos em que vivemos atualmente de censura governamental às questões LGBTQIA+. E tais cenas talvez não tivessem o mesmo impacto e apelo se não fosse justamente esta urgência politizada enfrentada no momento. O único porém talvez ainda seja a capitalização do sexo, muito presente no submundo retratado, em parte justamente por se tratar de um universo ainda proibido de vir à tona no cenário hegemônico, e, para tais liberdades acontecerem, não deixam de ter seu preço, como subsistência e moeda de troca… Um desconforto talvez necessário, mas que poderia ser atenuado ao menos nas personagens que possuem empregos e fontes de renda mais oficiais. Ainda assim, um reflexo desta sociedade e da necessidade ainda maior de precisarmos liberar as velhas amarras para não precisar mais de censuras nem hoje, nem nunca mais..
Ou seja, os 10 anos que a produção demorou para ganhar vida deu toda uma nova camada de ressignificações e valorização extra. Uma carga de luta e resistência através do erotismo no sentido de existir. Corpos e contatos íntimos que não se limitam apenas às cenas de sexo. Existe outro detalhe ritualístico bastante realçado: os banhos que os personagens dão uns nos outros são literalmente um rito de passagem (como o lírico banho de canela que Nanini dá na personagem de Denise Weinberg, ambos sublimes), regado à iluminação barroca cambiante quase como a metamorfose de uma borboleta colorida. Tudo parte de uma grande transformação de autoaceitação.
Por tudo isto, “Greta” consubstancia a bandeira que levanta com pura linguagem de cinema, e não pode ser reduzido apenas à causa que defende, tão importante quanto. Mas a estética da ética prima por uma grande história. A intimidade da luz traz à tona personagens com grande identificação de empatia mesmo num lugar de desejo e estranhamento que podem não pertencer a todos os corpos dispostos na plateia de espectadores, mas que podem se reconhecer no direito a possuir sua própria liberdade de desejo.
E, apesar de estarmos falando da anatomia de Grey ou de Greta ou de Nanini, em toda sua essência interna e externa, é graças ao direito de existência dela e nosso na mesma proporção, que a plateia pode não apenas ser paciente deste hospital na tela, mas também interlocutor ativo para poder mudar a realidade ao redor de forma mais inclusiva e tolerante do que os tempos em que vivemos.