Greice
Por Greice, com graça
Por Letícia Negreiros
Festival Olhar de Cinema 2024
Greice (Amandyra) é uma figura ambígua. Carismática e simpática, mas impulsiva e um tanto dada a uma desajeitada mitomania. A mais nova obra de Leonardo Mouramateus acompanha seu cotidiano após se envolver em um escândalo na Universidade de Belas Artes de Lisboa e ser obrigada a voltar para o Brasil. O longa, batizado em sua homenagem, carrega o espectador em uma envolvente viagem por suas artimanhas e mentiras. Nos tornando cúmplices do que passamos a encarar como uma brincadeira de criança, abdicamos de nossa culpa em virtude da graça de Greice.
O filme se consolida em torno da hipnose de sua personagem homônima. É magnética, apaixonante. Somos apresentados a sua lábia pelo absurdo. Parecendo não possuir nenhum tipo de vergonha ou senso de ridículo, bate à porta de um desconhecido com uma história fantástica e um olhar cativante. Tudo por um banho de piscina. Envolvendo terceiros – pessoas do seu convívio real, mas sem nenhuma noção ou conhecimento de seu envolvimento com o ocorrido – Greice se convida para a casa de Afonso (Mauro Soares) e é recebida de braços abertos.
Vivendo em Portugal já há algum tempo, ela personifica o “jeitinho brasileiro”. Conforme “Greice” nos contextualiza em seu cotidiano, mais envolvente se torna seu jogo de cintura. Não é uma personagem sincera, longe disso. Nem mesmo sua mãe se vê livre se suas inverdades e conversas fiadas. Ninguém realmente parece conhecê-la. No entanto, suas mentiras não são apresentadas como maliciosas ou perversas. Disfarçadas de pequenos deslizes e deliciosas como histórias de bar, as lorotas são desmentidas de forma gradual. Greice as usa com charme e sensualidade, nos furtando a possibilidade de tomá-las como algo negativo.
Em meio ao sorriso fácil e palavras bem desenhadas, o conflito inicial que faz a personagem deixar Portugal se dissolve na narrativa. O problema na Universidade se enfraquece em meio às histórias mirabolantes e, mesmo sendo a única com certeza verídica, perde o brilho conforme acompanhamos o dia a dia dela. Greice nos conduz através das relações do cotidiano e tudo alheio a isso assume tons de desimportância. No lugar de condená-la pela manipulação dos fatos, nos pegamos endossando-os, tentando adivinhar como ela irá repaginar esse acontecimento novamente.
Essa dinâmica, porém, sofre uma ruptura geográfica. Se em Portugal era o “jeitinho brasileiro”, no Brasil “Greice” é “para inglês ver”. Suas mentiras, por mais que ainda muito carismáticas e divertidas, parecem mais ofensivas. Em momento algum realmente compreendemos o motivo por trás de suas lorotas e histórias, mas até então não pareciam de todo ruim. Talvez por agora envolver mais a família, talvez pela introdução de Enrique (Dipas), as narrativas, antes tão inventivas e surpreendentes, se tornam um pouco enfadonhas e até mesmo estúpidas ao começarem a se assemelhar à manipulações.
Clea (Isabél Zuaa) diz que Greice é amiga das circunstâncias e que escreve de trás para frente. Em Portugal, isso era envolvente, hipnótico, misterioso. No Brasil, apresenta Greice como uma pessoa egoísta. Aqueles que cruzam seu caminho não passam de peças manipuláveis no tabuleiro de sua vida. Não há quem espace: mãe, irmã, amiga, prima, amores… E, no entanto, ainda há um receio em vê-la como uma pessoa má. Greice é, na verdade, apenas uma pessoa. Esse egoísmo tóxico é vendido – e muito bem comprado – como uma impulsividade carismática. A toxicidade é disfarçada de personalidade e suas mazelas, de acidentes de percursos.
Mouramateus nos manipula até o fim com sua narradora nada confiável. Após promessas de amor e juras de irmandade, afirmando que ficar no Brasil era o que precisava, Greice retorna para Portugal. É frustrante. Somos, assim como os demais personagens de sua história, descartáveis e manipuláveis. Mesmo assim, é difícil culpá-la. Ela está apenas vivendo sua espontaneidade. Uma das únicas verdades apresentadas é seu espírito volátil. É uma pessoa que vive única e exclusivamente para si mesmo. Suas amigas, sua família, seus amores são passageiros. “Greice” existe apenas para Greice. Assim como uma história que inventou em seu diário na adolescência, o longa nada mais é do que uma memória que ela escolheu manipular e guardar da forma que mais lhe agradasse.
Greice guarda, lembra e conta da forma como vive e ama. Com impacto. Se a realidade não lhe agrada, ela a complementa como convém.