Grade
A libertação pelo desejo
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2022
O longa-metragem de estreia de Lucas Andrade é um documentário que trabalha entre a realidade e a fantasia, construindo um filme de difícil categorização em uma Mostra Aurora que mostrou a diversidade das produções contemporâneas. “Grade” possui uma proposta peculiar, onde o espectador acompanha o cotidiano de pessoas encarceradas, em um tipo específico de “cadeia”. Desde os primeiros minutos, fica claro que a ideia de uma liberdade limitada, marcada pelo plano dos olhos fitando um buraco, pelo cadeado trancado, possui amplo contraste na libertação que o filme propõe para os sonhos de seus personagens, a partir de montagens que permitem passear por outras realidades.
Transformando esse registro prosaico em verdadeiros ensaios da potência criativa e interpretação de um universo que não vemos, os registros são trabalhados em duas frentes que se complementam: o cárcere e o que existe fora dele. Esses espaços que se encerram na limitação das grades, tornam-se experimentações que fragilizam os limites da ficção e do documentário e expandem a representação dos próprios afetos. Quando um dos personagens lê uma carta de outra prisioneira, o que está em cheque não é apenas a inocência dessa pessoa que não vemos, mas a confissão da tristeza de saber que seu filho está crescendo e essa liberdade lhe foi tirada.
Como discussão dos métodos de privação da liberdade, “Grade” oferece debates importantes sobre a sociabilidade dentro das cadeias e da relação de poderes minimizada pela própria regulação do sistema. Não por acaso, faz questão de mostrar a questão burocrática da APAC (Associação para a Proteção e Assistência aos Condenados), em uma escala regional, para que o espectador possa ver como as medidas são colocadas em prática. A montagem não idealiza a proposta e registra algumas queixas dos encarcerados, que reclamam de incongruências impostas pela Associação. Essa atitude de retratar o cotidiano a partir de sua realidade, não apenas dos méritos ou dos sonhos, expõe algo que vai se consolidando ao longo da projeção: essa fricção do que é real e do que é encenado, não atravessa um desejo de fetichizar as relações ali existentes.
Não por acaso, a produção de “Grade” intervém pouco nas filmagens, aparecendo mais na maneira com que traduz os anseios. Isso porque o filme está sempre interessado no que seus personagens têm a dizer, não em um julgamento ou retrato particular do que vemos na tela. Nesse sentido, os enquadramentos procuram uma passividade diante dos acontecimentos, mantendo o rigor desses quadros. Porém, existe um jogo de decupagem que assimila os diálogos a partir de uma dinâmica de ficção, reforçando que a criatividade é uma força presente, e necessária, nesses espaços que tanto limitam as pessoas. Essa entrega por uma encenação cinematográfica que não se define entre seus formatos, dialoga particularmente bem com a proposta da Aurora, à procura de novos talentos que entendam essas “transições”, expostas na temática, como uma necessidade de potência criativa, mesmo que entre a realidade.
Esse campo de atuação do cinema brasileiro contemporâneo é bastante rico, mesmo que acabe insistindo em certas repetições formais, como a assimilação das intervenções digitais e da fantasia para sustentar os enfrentamentos das dificuldades, traumas e desejos. Contudo, acaba tornando o atual contexto estético e o investimento no “realismo fantástico” em um grande eixo para se explorar dispositivos e formatos, seja com “Rosa Tirana” (2021) ou com “Grade”, as tentações são muitas e imaginar as possibilidades de uma estrutura que apresenta a materialidade com o lúdico dessas relações dramáticas é uma maneira de encontrar um debate que se aprofunda nas relações da cultura brasileira e dos próprios conceitos a serem trabalhados na ficção e no documentário.
Acaba se destacando pouco por seu resultado mas eleva as possibilidades de uma conversa em torno dos caminhos futuros de nossas produções.