Gorbachev.Céu
Pensei em chutar o balde, sabia?
Por João Lanari Bo
Durante o Festival É Tudo Verdade 2021
“Gorbachev.Céu”, de Vitaly Manskiy, é daqueles documentários que paira numa esfera espiritual fora das condições normais de temperatura e pressão. O corpo de Gorbachev está lá – inchado pela diabete, lento pelo desgaste da idade, 90 anos – ele fala, come, bebe, ri e verseja, mas a vertigem do fluxo histórico engolfa a tudo e a todos. Ele, sim, é um real portador do discurso falocêntrico de que tanto se fala hoje em dia: Gorbachev é responsável por um dos maiores e radicais landings de todos os tempos, isto é, ele foi o piloto que aterrissou (e neutralizou) 70 anos de império soviético no terreno minado e pantanoso da Guerra Fria do final do século 20, cheio de ogivas nucleares e dentes afiados. Ele mudou a História: tudo isso sem derramar uma gota de sangue. Não surpreende que os recursos para o documentário tenham vindo sobretudo da Letônia e República Checa, alguns dos países que se beneficiaram dessa transição radical. Amado no entorno da ex-URSS e respeitado no Ocidente, mas ostracizado no país natal, Rússia – Gorbachev é um raro caso de um sujeito da História a compartilhar nossa contemporaneidade, alguém que, no auge da pressão dessa tarefa descomunal, pensou angustiadamente em “chutar o balde”, como confessa logo no início do filme.
Ninguém duvida de que o evento singular mais marcante do século 20 tenha sido a revolução bolchevique de 1917. Uma aceleração histórica sem precedentes, diretamente involucrada com a Primeira Guerra Mundial, inevitavelmente amarrada à Segunda Guerra, que desembocou na Guerra Fria. E sempre sujeita a sobressaltos e injúrias, euforias e esperanças, luto e melancolia. Cada palavra emitida em “Gorbachev.Céu” tem o pano de fundo dessa materialidade histórica: o projeto era construir o homem novo soviético, que iria mudar a face da Terra e resgatar a humanidade da queda abissal que apontava o perverso capitalismo. Hoje parece fácil descartar a megalomania do projeto, que caiu, como diz o clichê, como um castelo de cartas. Mas o imenso esforço intelectual e emocional que o embasava, do qual Gorbachev é tributário, é inegável: sua trajetória, da família camponesa à formação universitária, sua ascensão na máquina devoradora e clientelista do Partido, e por fim suas reformas – a glasnost (“transparência”), que aumentava as liberdades de expressão e imprensa, e a perestroika (“reestruturação”), que promovia a descentralização das decisões no âmbito econômico – mais do que confirmam a riqueza e a complexidade do projeto comunista.
Sim, porque não faltam contradições: Gorbachev conta com humor e franqueza a perseguição que seu avô, membro de uma fazenda coletiva, sofreu no tempo de Stalin, preso e torturado durante meses (o avô da esposa Raíssa não teve a mesma sorte, foi executado). Não resta dúvida de que Stalin e a loucura persecutória, que aniquilou centenas de milhares de supostos inimigos de classe e levou à morte pelo menos 10 milhões de pessoas – como informa o documentário de Vitaly Manskiy – afetou profundamente o último líder soviético. Talvez por conta desse labirinto de contradições é que uma certa impressão de Gorbachev como enigma de si mesmo, incapaz de compreender seu papel na História, emane das imagens e falas. Mas quem, com esse nível de protagonismo, seria capaz? Gorbachev afirma que está orgulhoso da libertação das antigas repúblicas da URSS – mas ao mesmo tempo parece saudoso da vida soviética. Ele, como muitos intelectuais pós-Stalin, revela-se admirador incondicional de Lenin, que se tornou uma espécie de reserva moral para os que ainda acreditavam no socialismo (mas que também ignoravam as medidas repressoras leninistas). Seria Gorbachev, enfim, uma correia quebrada que parou o motor, cujas ações foram condicionadas pelas oportunidades, obcecado apenas com sua carreira política? Ou um arauto da paz, que libertou milhões, dentro e fora da União Soviética, livrando a humanidade de uma hecatombe nuclear?
Vitaly Manskiy retrata seu personagem com elegância e intimidade, como alguém que teve decência suficiente para deixar o poder voluntariamente. A casa onde mora nas cercanias de Moscou – cedida pelas antigas repúblicas que se libertaram do império soviético, em particular os países bálticos, onde Gorbachev é um ídolo vivo – é mostrada com fineza, espaço de recolhimento e serenidade. A desaceleração da vida, ditando um ritmo melancólico e sem pressa, a luz esmaecida e os quadros de Raíssa na parede, tudo contribui para a atmosfera de reflexão. As poucas saídas, uma visita à Fundação Gorbachev e uma celebração de Ano Novo com amigos, servem para inserir a imagem televisiva de Putin em “Gorbachev.Céu”. Depois de rusgas e desavenças públicas entre os dois, a idade de Gorbachev e seu apoio ao referendo que legitimou a ocupação russa da Crimeia, contestado internacionalmente, parecem ter amolecido Putin: no aniversário de 90 anos do ex-líder, o atual Presidente telegrafou: “Você pertence, com razão, ao grupo de pessoas extraordinárias e brilhantes, de estadistas proeminentes da era moderna que exerceram uma influência significativa na história nacional e mundial”.