Mostra Um Curta Por Dia 2025

Gomorra

Claustrofobia tóxica

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2008

Gomorra

Gomorra”, realizado em 2008, é um desses filmes cujo impacto ultrapassa os limites do imaginário cinematográfico – não apenas pela contundência do que acontece no espaço dramático, pela violência que extrapola das cenas, mas também pelas ramificações que se desdobram na realidade. Em 2016, Bernardino Terracciano, ator que faz um dos chefes da Camorra na fita, foi condenado a prisão perpétua pela participação no assassinato de Luigi Caiazzo. Seu irmão, Giuseppe Terracciano, foi o autor, também pegou perpétua.

Mesclar atores profissionais com não-profissionais foi uma das estratégias bem sucedidas que o diretor Matteo Garrone utilizou para dar uma sensação de proximidade com o microcosmo que marca “Gomorra”. Ações de rotina da comunidade que orbita em torno do Vele di Scampia, complexo residencial nas cercanias de Nápoles, são captadas no fluxo diário tal como nos filmes neorrealistas, com o propósito de obter aquele sentimento extraordinário de verdade, como dizia Andre Bazin. Com uma diferença abissal, entretanto, para os clássicos dos anos de 1950: não há mensagem humanista, não há redenção possível nesse ambiente tóxico, só resta a absoluta desesperança, a inviabilidade de qualquer alternativa para escapar desse mundo claustrofóbico.

O projeto Vele di Scampia, uma espécie de cidade-jardim vertical, foi inspirado na arquitetura de Le Corbusier. A obra ficou pronta em 1975, mas começou a ser demolida em 1997. A última unidade de pé, cenário em “Gomorra” para interiores e externas, funcionou como referência brutalista aos acontecimentos narrados. Quando Totó, de 13 anos, é convocado para trair a mãe de um camorrista que estava do lado “errado”, alguém que ele prestava favores e tinha intimidade, o enquadramento é decisivo: plano geral do fim do corredor aberto, pequenos apartamentos com grades, a vítima sai e é liquidada abruptamente. Os assassinos pareciam estar ocultos no concreto degradado do prédio. Totó, que mal começara a servir de “avião” para levar drogas, tinha passado no teste da pistola – levar tiro a queima roupa vestindo colete a prova de balas.

A fotografia, chapada e nervosa, câmeras portáteis seguindo de perto os personagens, explorou o que os especialistas conhecem como shallow focus, ou seja, técnica que mostra um plano geral claramente, enquanto o fundo está desfocado ou fora de foco. Em “Gomorra”, o shallow focus aparece em contraponto à profundidade de campo, quando toda a imagem está em foco. Na sequência em que Don Ciro – brilhante atuação de Gianfelice Imparato como “homem da mala” para pagar ajuda às famílias dos membros abatidos da Camorra – se afasta apressadamente de um local perigoso, o fundo sai de foco, como se ele estivesse tentando bloquear a violência que acabou de ver. Alguém grita seu nome, Don Ciro para e a imagem retoma o foco integral. O “foco superficial” transmitiu a percepção de violência iminente, entranhada no personagem que se viu no meio de uma guerra fratricida do grupo outrora coeso. Uma percepção enviesada, parcial, que turva a visão do espectador e assusta Don Ciro.

Guerra, aliás, que serve como elemento unificador da ação, vagamente baseado no livro homônimo de Roberto Saviano, com roteiro (que Saviano colaborou) utilizando algumas passagens fragmentadas do texto. O resultado foi uma narrativa com múltiplos pontos de vista, sem começo, meio e fim convencionais. A guerra contribui para intensificar a apreensão de um sistema fechado do qual não há escapatória. Dentre os fios narrativos, um dos que se passa fora do Vele di Scampia é conduzido por Franco, empresário inescrupuloso e hábil que dirige operações de despejo ilegal de resíduos tóxicos. O ator é o impagável Toni Servillo, que contrata um universitário como assistente – Roberto, o único personagem que se arrepende do envolvimento com a Camorra, e larga o emprego. Divirta-se fazendo pizzas! grita Franco abandonando o rapaz no meio da estrada.

A mais patética ramificação do filme (e livro) na realidade é sem dúvida o autor Roberto Saviano, jurado de morte pelo clã Casalesi – a Camorra selecionou o chefe do clã, Giuseppe Setola, para executar Saviano. Desde então a vida do escritor – que coleciona títulos de sucesso, traduzido em 30 línguas e foi o principal autor da série “Gomorra” para TV, lançada em 2014 com cinco temporadas – tornou-se uma acrobacia permanente, sem colchão de queda. São cinco policiais que o acompanham full time, ele viaja o tempo todo, sobretudo para fora do país natal.

Recentemente, Saviano entrou em rota de colisão com a Primeira-Ministra Giorgia Meloni: chamou-a de “canalha” e foi condenado a pagar multa por difamação. E pior – indispôs-se com Matteo Salvini, líder da extrema-direita, que ameaçou retirar-lhe a escolta se chegar ao Governo.

5 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Deixe uma resposta