Golpe de Sorte em Paris
As realidades fortuitas e paralelas de Woody Allen na França
Por Fabricio Duque
Festival de Veneza 2023
Ao assistir “Golpe de Sorte em Paris” temos a impressão que Woody Allen parece mesmo não ter perdido sua característica incondicional no processo de criação de suas obras: a de conduzir o público por uma narrativa mise-en-scène de realidades alternativas, de acontecimentos fortuitos, de carácter aleatório, sem efeito de nenhuma causa identificável. Esta construção cênica, que sugere uma quebra o encadeamento de planos, se inicia na fantasia – uma atmosfera mais desconexa e teatralmente mais suspensa da realidade, para se desenvolver aprofundando outra realidade, mais racional – a que está escondida nas vidas privadas. Essas realidades – estágios momentâneos de se estar – são contraditórias, conflituosas e motivadas pelo acaso, pela sorte, pela literatura e pela busca da verdade cerebral, quase pragmática e defensiva contra reviravoltas e surpresas. E todas representantes dominantes da estrutura dos temas universais, o adultério e/ou o amor livre de amarras tradicionalistas (e somente pautado no desejo incondicional do próprio desejo), por exemplo.
Exibido no Festival de Veneza 2023, “Golpe de Sorte em Paris”, quinquagésimo filme de sua carreira, traz também outro elemento: a incursão do cineasta novaiorquino pelo mundo europeu, neste caso, a França, parceria afetiva que vem sendo alimentada desde “Meia-noite em Paris”. Sim, confesso que “Golpe de Sorte em Paris” me causou uma estranheza no começo. Porque há um outro Woody Allen aqui, só que exatamente o mesmo de antes – com a mesma essência de humor ácido, macabro, sarcástico e de coloquialismo idiossincrático. Talvez esse desnorteamento se dê pelo fato de que todo o filme é falado em francês e com elenco francês. E com um que bem presente de Henri-Georges Clouzot. Sim, talvez essa união tenha dado certo por causa da compatibilidade de neuroses dos dois “povos”, que o livro “Paris versus New York”, de Vahram Muratyan, consegue traduzir de forma precisa. De um lado, a baguete (com manteiga) individual debaixo do braço, do outro, a caixa múltipla de bagel (com cream cheese). As ruas em Paris são apresentadas como orientações (com seus macaron) e em Nova Iorque, locações (com seus cupcakes). Ou a cidade luz versus a grande maça, com fachadas pierre de taille em contraponto a brick. Ou Amélie Poulain, em Montmartre, ou Carrie, a Estranha, no Upper East Side. Sim, são tantas diferenças culturais, mas que em “Golpe de Sorte em Paris” ganham um equilíbrio complementar.
No livro prosa do francês Éric Vartzbed (que trabalha em instituições psiquiátricas da França), “Como Woody Allen pode Mudar sua Vida”, com um que de”auto-ajuda”, o escritor busca definir o que são o acaso e a sorte, “que comandam nossas vidas”, para o cineasta novaiorquino. “A existência é vista como uma gigantesca loteria na qual o poder individual vai diminuindo com o tempo, até desaparecer”, explica o psicanalista. Sim, o livro de 2011 dá uma prévia do que Woody Allen colocou nas últimas frases do roteiro de “Golpe de Sorte em Paris”: “Ela chegou por fim à conclusão de que a vida é uma variável aleatória, e cada criatura viva é um jackpot na grande loteria cósmica”. Sim, isso quer dizer que nós estamos à deriva dos determinismos do Universo. A solução é “transformar essa passividade angustiante em atividade”. E não reclamar do que “recebemos”. Será que vivemos um gigante Big Brother? Neste filme, é concedido ao acaso o papel principal. O grande deus invisível. Uma “força” cósmica que nos impulsiva e altera até mesmo os nossos livre-arbítrios.
“Golpe de Sorte em Paris”, que aborda o conceito da tradicional esposa-troféu (já trabalhada por François Ozón), também é uma imagética experiência técnica. A fotografia de Vittorio Storaro, sempre escolhido por Woody Allen, conjugada com a trilha-sonora jazzista, traz um realismo mágico e uma aura de ficção lúdica. A luz que está entre dois mundos paralelos: o da imaginação projetada e o da realidade resignada, nos conduz a um estágio de querer dormente versus o reencontro do impulso das personagens. Storaro ressignifica nossa percepção da própria iluminação francesa, mitigando assim moralidades e conceitos mais melodramáticos do amor. Aqui, esse amor é passional, mas pela razão (ou falta dela), que romantiza a morbidez criminal dos fins para se chegar aos meios do desejo incondicional máxima de cada um. Neste filme, o matar é visto como uma consequência natural da paixão, para manter a própria obsessão de sempre se ter por perto o objeto de desejo. Pode soar doente, macabro e até mesmo psicopata, mas não é, ainda mais se analisarmos vida e obra de François Truffaut, Bertolucci e Hitchcock.
“Golpe de Sorte em Paris” é na verdade um combo universal, de “destinos cegos e seus decretos incontroláveis”. “Ao mostrar , em seus filmes, a força do acaso, Woody Allen orquestra a contingência, molda o acidental, roteiriza a ideia de não haver roteiro, e vai à forra, ainda que breve: a relação de forças é invertida; o poder do destino, subjugado. Com as armas do imaginário, o Golias do acaso é temporariamente derrotado”, finaliza Éric Vartzbed. Pois é, Woody Allen corrobora em “Golpe de Sorte em Paris” o que faz de melhor: manipular a mente do espectador com estímulos aleatórios e colocando tudo “nas costas” do acaso. A conclusão é que o cineasta está permissivamente livre para usar todo e qualquer elemento-artifício que achar melhor, criando assim uma gama de possibilidades infinitas, sem ter nenhum trabalho, porque tudo estar tudo disponível, mas com competência perspicaz suficiente para criar uma mise-en-scène tão única e conectada com os acontecimentos surreais e inexplicáveis de nosso cotidiano, que nos resta apenas viajar em toda essa loteria algorítmica ofertada a esse público com sorte.