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Gloria!

Emancipação musical

Por Pedro Sales

Festival do Rio 2024

Gloria!

Exibido na competição do Festival de Berlim 2024 e selecionado na mostra Expectativa do Festival do Rio deste ano, “Gloria!” é o longa de estreia da cantora e compositora italiana Margherita Vicario. Apesar desta ser a primeira experiência da artista na direção, antes esteve na frente das câmeras. No filme-antologia “Para Roma, Com Amor” (2012), de Woody Allen, Vicario fez uma pequena participação. Nesta estreia, nada mais natural para ela do que contar uma história que se relaciona com a música. Centrado em um grupo de mulheres que participam da orquestra de um instituto, o longa pretende construir uma verve musical rebelde, revolucionária, mas ainda assim de aquecer o coração. Nisso, esbarra em escolhas criativas questionáveis que minimizam o impacto pretendido.

No ano de 1800, o instituto musical para garotas órfãs Sant’Ignazio, nas proximidades de Veneza, é liderado pela mão pesada do maestro Perlina (Paolo Rossi). No meio da rigidez dos ensaios, está Teresa (Galatéa Belluigi), uma moça acanhada e tida por todos como muda. Diferentemente das jovens que vivem no instituto, ela não faz parte da orquestra, mas cuida da limpeza. O que Teresa esconde, porém, é sua sensibilidade musical. Com a chegada de um piano no porão do instituto, os caminhos da empregada e das artistas se cruzam, e, juntas, repensam a música vigente em direção a algo mais moderno e radical. Tal qual uma gata borralheira, Teresa se revela muito mais do que pensavam que ela podia ser. A grande oportunidade de mostrarem o feito, a música forjada nas madrugadas a fio, é convencerem o maestro, em bloqueio criativo, a apresentar a composição durante a visita do recém entronizado Papa Pio VII no instituto.

Em “Gloria!” a preocupação inicial de Margherita Vicario é construir senso de musicalidade. A sequência de abertura, portanto, tece uma amálgama entre a musicalidade orgânica, dos sons habituais do dia-a-dia, com a musicalidade acadêmica, as vozes do coral solfejando notas. É assim que Teresa enxerga o mundo, uma combinação de sons que formam essa orquestra única. A montagem rápida para cada som, neste sentido, remete à linguagem de TikTok. Como nos vídeos de receitas em que o cozinheiro corta os alimentos em sincronia com a canção utilizada no vídeo. Ainda assim, há uma carga muito clara da influência do musical, sobretudo quando parece haver disputa entre idealização e realidade. Esse tom animado na obra, logo dá vez para a exposição das hierarquias no instituto e como há pouco espaço para ascensão, como no Antigo Regime.

No topo da cadeia, o maestro, em seguida, as auxiliares dele. Na zona intermediária, ficam as instrumentistas, e na base, a criadagem. Ao estabelecer essa noção estratificada, o longa evidencia que para Teresa não sobra muito, o que justifica a inicial resistência das instrumentistas a ela. Aos poucos, então, a trama vai derrubando essas barreiras e cria um senso de união muito palpável, sobretudo nas cenas em que Teresa interage com elas. Isso começa quando o piano-forte chega ao instituto. Mantido sob segredo no porão, o instrumento era uma novidade para época. Neste sentido, é totalmente condizente que um filme que pretende trazer uma revolução por meio das notas e emancipação musical também a incorpore materialmente. O surgimento do piano pontua a transição entre o período barroco, em que o instrumento mais importante era o cravo, e o período clássico, em que esse foi substituído pelo piano.

Quando as instrumentistas descobrem que Teresa sabe tocar piano, é como se ela fosse validada pelo grupo. Apenas Lucia (Carlotta Gamba), primeira violinista, ainda age como uma Drizella, mas aos poucos cede e reconhece a bondade da moça. Portanto, “Gloria!” se fundamenta bastante na construção de atmosfera leve em sua trama, aliada à direção mais clássica – com exceção das sequências musicais – que aposta em planos em contraluz e iluminados por velas para um apelo estético de filme-de-época. Existe, então, dificuldade em avançar o roteiro sob uma perspectiva dramática. A montagem mais rápida alterna a evolução do grupo musical e a incapacidade do maestro em compor, mas fora disso, o longa se encaminha para tramas secundárias. Talvez, a que melhor funcione seja o desejo de Lucia em sair de lá e se casar com pretendente. Pelo menos, é a mais impactante, ainda que sem a manutenção das consequências alardeadas. Já a reviravolta de Teresa e a relação do maestro parecem deslocadas. A primeira, como tentativa de choque, a segunda por falta de aprofundamento no texto mesmo.

Gloria!“, dessa forma, vai tropeçando nessa necessidade de trazer mais peso à trama. O que há de melhor aqui, na verdade, é justamente esse clima leve e musical que constrói ao longo da rodagem. São as disputas saudáveis pelo tempo ao piano e essa montagem que reitera o interesse pelo novo e certo cansaço da musicalidade vigente. O tom caricatural do maestro, inclusive, funciona por conta disso. Ele acaba sendo uma personificação do que é antiquado, ao passo que as jovens transbordam vontade de revolucionar: notas afastadas sem necessidades de escalas rápidas, introduzir percussão à orquestra e, mais do que isso, permitir a si mesma sentir a música. É uma pena, no entanto, que a sequência final cujo objetivo era transmitir exatamente todo esse ideal, que é construído ao longo do filme, transforme-se em um carnaval desordenado. O momento gracioso torna-se risível. Na cena, a trilha sonora, que é assinada por Vicario, até envolve o espectador e público – mesmo que a aproximação entre erudito e popular por vezes soe estranha ao longo do filme -, mas o restante é muito farsesco e enfraquece o ideal de aquecer o coração. O epílogo tenta amenizar um pouco, e a dedicatória aos músicos esquecidos faz mais justiça à proposta do longa do que seu encerramento em si.

3 Nota do Crítico 5 1

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