Germino Pétalas no Asfalto
Afeto e solidariedade no Brasil de hoje
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2022
“Germino Pétalas no Asfalto” é um importante documentário que nos aproxima do processo de transição de gênero de seus personagens e mostra as lutas diárias por respeito e sobrevivência em um país que mergulha radicalmente em uma onda conservadora nos últimos anos. Coraci Ruiz e Julio Matos assinam a direção de um projeto que procura abarcar tantas frentes distintas em sua temática, que acaba perdendo força com o passar de sua projeção.
A questão central que introduz os personagens na obra, a transição em si, funciona muito bem na demonstração do tempo, da ansiedade pelos resultados e na maturidade de saber onde chegar, decretando o fim do processo. O problema é que há uma série de discussões paralelas que vão sendo inseridas, desde a ascensão de Bolsonaro até a pandemia, o percurso perde seu foco e não consegue provocar uma discussão que não tenha sido esgotada. “Germino Pétalas no Asfalto” denuncia o discurso conservador e explicita o medo de suas personagens diante de um futuro incerto, mas não consegue levar a exposição para além da moral. Assim, tematiza a moral do governo sem recorrer à uma construção dessa própria retórica, importada e trabalhada ao longo de um largo tempo onde o Brasil já dava indícios do que se tornaria.
Além disso, existe um núcleo particular do documentário que mostra as reuniões de um grupo que debate a resistência diante das violências cotidianas da sociedade e uma série de rituais envolvendo uma deidade que representa seus corpos. O problema é que o filme passa a ceder para performances isoladas que procuram a exaltação nesses termos, mas não funciona bem e acaba afetando drasticamente o ritmo da progressão. Não por acaso o eixo final da obra parece acelerar para conseguir encontrar uma junção desses rituais com a realidade do isolamento, até mesmo a vacinação contra a Covid-19. A sensação é que o imenso esforço para unir essas diversas frentes temáticas, termina atrapalhando o desenvolvimento do próprio trabalho. Nesse sentido, fica claro que a primeira metade consegue sintetizar suas questões de maneira mais sintética, mostrando que a proximidade de Jack e seus amigos com os realizadores, ajuda a compreender como o afeto e a solidariedade são capazes de mudar a vida de diversas pessoas.
“Germino Pétalas no Asfalto” possui dois eixos que funcionam de maneira mais objetiva que as demais, a transição e a sequência que vemos os alimentos sendo entregues em meio a pandemia. Esse segundo momento funciona de maneira desordenada e acaba não se desenvolvendo a ponto do espectador compreender como funciona essa organização social que salva vidas, mas explicita o sentimento de cooperação entre um grupo que se vê marginalizado há anos e que viu a ascensão recente do conservadorismo piorar suas condições de sobrevivência. Em consequência dessa superficialidade constante de inúmeras temáticas que vão sendo pinceladas pela obra, os momentos íntimos entre os personagens acaba sendo uma espécie de porto seguro para o próprio documentário, recorrendo aos encontros para vermos como as transições estão ocorrendo e como essa amizade se torna um fator decisivo nessas relações.
Existe uma certa liberdade em intervir na imagem, com desenhos e efeitos que atravessam a projeção, criando uma sensação de manifesto em andamento. Isso funciona bem em determinadas sequências, mas acaba criando uma certa distração em outros momentos, como a oração seguida de uma música eletrônica durante o encontro do grupo que cultua Inanna. E é nessa projeção que nunca consegue funciona de maneira plena, que “Germino Pétalas no Asfalto” consegue ter uma grande sinceridade e acaba tropeçando em tantos momentos em que a discussão se distancia o eixo principal, sem que haja um material que sustente parte das contradições de um país que se perdeu no conservadorismo.