Gerda
As muletas contemporâneas
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
O realismo fantástico se tornou um ponto modal do cinema. Se antes a expressão latino-americana trabalhava o misticismo de nossas questões materiais, o cinema europeu apropriou a ideia para catalisar uma série de representações frágeis de uma fuga da realidade. Uma investigação sistemática deve ser realizada para compreender como essa situação se instalou.“Gerda” de Natalya Kudryashova parece transar com a ideia de uma fantasia que serve como escape imediato para certas mediações narrativas. O filme está mais preocupado em chocar o espectador com a brutalidade do mundo diante de sua protagonista que necessariamente discutir algo a partir disso. A violência é uma constante na vida de Lera (Anastasiya Krasovskaya) que sobrevive às repressões diárias, no trabalho e em casa.
Como a própria sinopse divulgada, reforçada na fala da diretora, o filme é sobre um “espaço metafísico”. Em verdade, é difícil conceber a ideia a partir do que é projetado. O longa não consegue conectar os pontos para ser funcional ao ponto de refletir sobre os “espaços metafísicos”, pelo contrário, apresenta uma série de questões materiais para o sofrimento e se utiliza do dispositivo fantástico para solucionar os imbróglios da estrutura narrativa. Quando o jogo de sedução é interrompido por gritos e pontapés, o projeto não sabe para onde caminhar. Existe um fetiche nessa proposta de exibição, onde esse universo do trabalho de Lera é um campo estético para a câmera ser livre e as luzes assumirem o controle. Sua forma de ganhar dinheiro é a tentativa do filme de criar uma base para a “santidade” da personagem. A esquemática é tão frágil que o ritmo cai drasticamente e o espectador se vê em uma constante representação desse sofrimento diário. Os sonhos delirantes de uma liberdade em meio à floresta, são fugacidades programáticas dessa ideia de um fantástico como mero dispositivo.
“Gerda” é uma construção inócua que trabalha a partir de pontos materiais com um negacionismo metafísico que não chega a lugar algum. O pai alcoólatra que é um perigo, o abuso da burguesia ao explorar sexualmente as dançarinas, nada disso é desenvolvido. Tudo é um dado para mostrar a corrupção do mundo em tônica fatalista, como uma doença que corrói lentamente essa “alma”. O artista que trabalha com os mortos é compreendido como uma ponte menos virulenta dessa sociedade. É um fetiche que se perde na confusão de um ciclo repetitivo onde Lera se vê constantemente em perigo. A muleta dramática aqui é um breve diálogo que abre a possibilidade da protagonista possuir “asas”, mantendo-se em suspenso até o fim da obra, onde uma imagem põe à prova a crença do espectador diante de suas imagens.
Infelizmente a falta de consistência em diversas ideias faz com que a experiência se torne enfadonha. Cada nova investida para termos alguma compaixão com as opressões, retoma o mesmo ponto de partida, uma mera exposição da situação como dado. E esses dispositivos se esgotam rapidamente, instrumentalizando as questões como gatilhos rápidos. Diferentemente de “Al Naher”, “Gerda” tem uma ideia sendo colocada em prática, mas não sabe como utilizá-la e cede ao irracionalismo primário, onde as cenas encerram em si uma proposta estética que se esvazia na insistência do fantástico como moeda de troca. Tenta ser provocativo de alguma maneira e provoca alguns bocejos lastimáveis. É nessa nota que uma revisão crítica do que o realismo fantástico vem apresentando nos projetos europeus deve estar em curso. Ao que parece, tornou-se apenas um recurso facilitador para digressões e assimilações. Como todo modismo, periga à decadência mas deixa lastros sentidos por um bom tempo.
Por mais que alguns planos sejam esteticamente bonitos, a privação de sentido para as situações dos personagens esvazia as imagens para um limbo metafísico que não conclui nem a ideia. Essa trama conceitual que a forma busca impor, é mais didática que dialética e se distancia dos conflitos que representa na tela. Uma base realista que se apoia no fantástico em busca de resposta para uma filosofia menos racionalista, um barato que termina mal em “Gerda” e deixa sequelas no panorama da Concorso Internazionale em Locarno. A competição não tem encontrado grandes êxitos, mas segue mais formulaica que as demais mostras. Resta aguardar as próximas exibições e torcer por uma mudança de paradigma. Ainda há tempo.