Gênero Pan
Faroeste malaio ou o mundo dos chimpanzés
Por Fabricio Duque
Durante a Mostra de São Paulo 2020
Vencedor do prêmio de Melhor Diretor no 77o Festival de Veneza, “Gênero Pan”, que integra a edição online da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2020, busca analisar o comportamento do ser humano pela vertente moral. O caminho de sua narrativa constrói a seus personagens uma ponte de transcendência metafísica, cujas características pautam-se na transmutação de idiossincrasias perante o meio social. Em seu mais recente filme, o realizador Lav Diaz volta a contar, em 157 minutos, a história de seu país pelo simbolismo religioso dos sete pecados capitais e dos dez mandamentos. Há quem brinque, em tom espirituoso, de que este é um curta-metragem do diretor, conhecido por seus longas-metragens de longuíssima duração, que chegam a mais de onze horas.
“Gênero Pan” é também um retrato de um povo em convulsões sociais (desumanidade, insensibilidade, crueldade, hostilidade, impaciência, autoritarismo governamental – “a Família Vargas” e perda da identidade cultural), enquanto existência humana, conduzido pelos temas universais que nunca saem de moda da vida, como a raiva, inveja, ciúme, ganância. Os menos afortunados transformam-se em alvos vulneráveis e submissos desse “controle por poucas pessoas”. “É a sobrevivência do mais apto; não use suas emoções”, diz-se. Aqui, a narrativa é conduzida por conversas em planos estáticos por uma fotografia preto-e-branco, estética, saturada ao contraste e que infere a Sebastião Salgado, fazendo com que seus personagens estejam detidos no próprio lugar-paisagem, cuja textura-forma infere como se estivessem enraizados e impossibilitados de sair.
Mas diferentemente do slow-cinema de seus filmes anteriores, neste, ainda que de observação cotidiana de tempo pausado de vida acontecendo em sua espontaneidade, percebe-se uma captação mais editada, talvez devido ao curto tempo de exibição. Seus personagens desfiam contos da Ilha “tartaruga adormecida” Hugaw (“sujeira”), “termo cunhado pelos americanos”. Porém de acordo com os locais, o nome significa “dançar nas nuvens”, porque “traz essa beleza do lugar para descansar”. E para “ter encontros sexuais”. No filme então, prostitutas “atendem” homens-machistas “depois de três meses trabalhando”.
“Gênero Pan” é também um lamento saudosismo. De reavivar memórias, ainda que mitos e/ou adulteradas por quem contou a primeira vez. De reconexão com a ancestralidade da terra “perigosa, mas com comida deliciosa e água mais calma”. Ao longo do filme, o tempo deixa de ser mais editado e passa a ser mais sensorial, como o barulho do vento, que se intercala com uma inserção em off de uma entrevista com um especialista que diz que “o cérebro humano ainda não está totalmente desenvolvido e que cada um tem um tempo diferente desenvolvimento cerebral, porque humanos são espécies de primatas. Uma espécie moderna e desenvolvida. Um Chipanzé Pan com atributos e semelhanças, e violências”. Versus os “cérebros desenvolvidos, como Jesus, Buda e Madre Teresa. São altruístas. Não sentem mais raiva, nem ciúme, não mentem, nem ansiosos e não têm desejo de matar, de conquistar, de roubar e de obter poder”.
Quando aprofundamos percepções, O longa-metragem nos evoca automaticamente a referência pop “Caverna do Dragão”, seriado infanto-juvenil dos anos oitenta, em que a mensagem despertada é o auto-conhecimento adquirido ao percurso do próprio caminho em buscar ajudar ao próximo, a ouvir ajuda por parábolas, controlar a ira e manter o coração sempre no bem, porque “não se cresce no mal”. A ilação também se dá aqui pelo tom mais ingênuo, mais dramático, quase de comportamento adolescente, ao se tentar imprimir pureza e simplicidade nesta composição de ações mais urgentes, rápidas, passionais, impulsivas, histéricas e catárticas. A mise-en-scène é mostrada como se fosse um teatro filmado, ora realista, ora encenado a uma tragédia grega de apresentação circense. Dessa forma, o filme queda-se a uma modulação amadora, de improvisação infantilizada, e permite que eles tenham essa liberdade na frente da câmera gerar o elemento causal, a consequência orgânica e o acaso de vida realista demais em suas reações, “efeitos da Fruta bruta” e intoxicações alucinantes.
Contudo, o parágrafo anterior também pode ser entendido como uma crítica ao humano, de “gênero Pan”. De seres com cérebros ainda não desenvolvidos. Que precisam ter o poder da situação todo o tempo. “Você é mais jovem, você tem que ser mais humilde”, ensina-se o Seu Paulo, o “Mestre dos Magos”. Em “Gênero Pan”, a transformação na floresta surte efeito. Entre “trancos e barrancos”, deixam de mentir, apesar de um incitar a mentira como meio a um fim maior. Há neste filme um estudo muito mais existencialista sobre o ser humano do que sobre a política. Uma metáfora à experiência da quaresma de “refletir sobre você mesmo. Afastando-se do egoísmo e aceitando sinceramente arrepender-se de seus pecados. E não desistir em meio a todo mal em seu meio”. Exatamente o que acontece em “Caverna do Dragão”.
“Gênero Pan” é também um filme de núcleos. Esquetes de fragmentos da vida. Como a do Capitão e o “monopólio do governo espanhol há 250 anos que conectava Manila a Acapulco, no México. Todos os contrabandos passavam por esta ilha”, “destruída por mitos pelos contrabandistas” para proteger seus negócios. Lav Diaz, que além de dirigir, escreveu o roteiro, editou, fotografou, produziu e ainda escreveu uma música interpretada na trama, resolveu neste filme experimentar artifícios: a história que avança, digressões e câmera na mão para confundir o espectador com a realidade ou conto. O último capítulo, da batalha entre o bem e o mal, esquadrinha um realismo mais direto, desencadeando no público uma aversão ao personagem “Judas”, o “diabo em pessoa”, o “mal espreitado” e fazendo com que seja exposta a maestria de seu realizador malaio, tudo por criar um atemporal faroeste de ruralidade descambada de éticas e pululada de necessidades de sobrevivência, orações, vigílias, liturgias, penitências e que obriga a “diminuir o prazer”.