Curta Paranagua 2024

Gaza

A desobediência da tribo de Judá

Por João Lanari Bo

Festival de Sundance 2019

Gaza

Gaza”, documentário realizado em 2019 pelos irlandeses Garry Keane e Andrew McConnell, ganhou uma trágica e devastadora atualidade com a guerra na Faixa de Gaza. O termo “atualidade” não tem muito sentido nesse contexto – o presente, sofrimento e limiar de morte, é um estado constante para os moradores da Faixa: o passado é sempre atual e o futuro sem perspectivas. Trata-se de um território carregado de temporalidades que se superpõem, bíblicas e coloniais pós-século 19: por isso mesmo, um território carregado de clivagens, de fragmentos que se dispersam e retornam, infinitamente.

A Bíblia associa Gaza principalmente aos filisteus. Deus deu a cidade a Judá, mas os israelitas falharam em obedecer a Deus para expulsar os antigos ocupantes de Canaã (Números 33:51-53). Por causa dessa desobediência, os filisteus e a cidade de Gaza permaneceram como uma pedra no sapato de Israel durante séculos (Juízes 2:3). Disse Deus (da tribo de Judá):

Lançareis fora todos os moradores da terra de diante de vós, e destruireis todas as suas pinturas; também destruireis todas as suas imagens de fundição, e desfareis todos os seus altos; E tomareis a terra em possessão, e nela habitareis; porquanto vos tenho dado esta terra, para possuí-la.

Citar o texto bíblico não é um mero exercício retórico, ainda mais em se tratando de um filme como “Gaza”: a extrema direita israelense, que desempenha um papel crucial no conflito em curso, tem como plataforma política substituir o direito secular moderno pela Torá. Torá: cinco primeiros tomos do livro sagrado da religião judaica, com origem no termo hebraico Yará, que significa ensinamento, instrução ou lei. A recente batalha política pelo esvaziamento da Suprema Corte em Israel tem esse pano-de-fundo.

A Faixa de Gaza e seus poucos mais de dois milhões de habitantes são o produto, entre outros, de um esforço regulatório em cima de uma situação territorial complexa, que começou com a criação do Estado de Israel pela ONU em 1947. Faltou combinar com os palestinos que ali residiam: seguiram-se guerras e a expulsão de centenas de milhares de pessoas que residiam nos territórios ocupados pelos israelenses para a faixa estreita ao sul, cercada por Israel, o Mediterrâneo e o Egito.

Gaza”, o filme, organizou-se com o objetivo explícito de mostrar a vida naquele enclave de forma a evitar as imagens habituais veiculadas no tempo exíguo das News, ou seja:  pobreza, tragédia e destruição, civis mortos e feridos (crianças sobretudo), soldados mascarados, jovens a atirar pedras e edifícios abandonados em ruínas fumegantes. Comparecem com destaque e são entrevistados no documentário, entre outros: surfistas e pescadores; uma jovem celista de família abastada; um taxista de bom humor e sincero; e um pai de família muçulmano, com dezenas de filhos, confessando que desistiu da quarta esposa por conta do mundo trágico que acolheria a nova prole. Tampouco comentários sociológicos são enfatizados: poucas palavras sobre o alto contingente de jovens sem emprego, nem mesmo sobre a ascensão política do Hamas.

O desenho de uma prisão aberta e exposta ao sol, contudo, vai pouco a pouco contaminando esse olhar complacente europeu. O mar, fonte de alimentos e metáfora espacial dos limites existenciais, funciona também como recreação e suporte para imagens clichês de pôr do sol – e é olhando para o mar que a celista se queixa dos estrangeiros: a única coisa que nos dão é simpatia. O velho pescador lembra ações perpetradas pelas patrulhas canhoneiras israelenses; jogam esgoto nos que se aventuram a pescar fora do limite permitido de 10 quilômetros de mar, quando não prendem os aventureiros (seu filho pegou dois anos de detenção por essa ousadia). Estamos, ao que parece, em uma zona de guerra vazia, plena de pequenas tensões e humilhações – e perigosamente instável.

As filmagens de “Gaza” aconteceram em maio de 2018 – em março daquele ano, teve lugar a primeira das manifestações conhecidas como Grande Marcha do Retorno, exigindo permissão para refugiados palestinos retornarem às terras de onde foram deslocados no que hoje é Israel. As manifestações ocorreram todas as sextas-feiras, até dezembro de 2019: o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital do Estado Judeu encorpou os protestos. A princípio organizadas por ativistas independentes, foram logo endossadas pelo Hamas. No filme, a atmosfera rapidamente sobrecarregou-se, zumbidos cortaram o céu e sugeriram embates entre os deuses.

O princípio da realidade, o adiamento da gratificação dos que buscam evitar a dor, mais uma vez se impôs.

3 Nota do Crítico 5 1
4 Nota do Crítico 5 1

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