Forman vs. Forman
Liberdade, um legado
Por Victor Faverin
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
No longa-metragem “Quem quer ser um milionário” (2008), todas as experiências difíceis vividas na infância pelo protagonista foram o estopim para que ele respondesse corretamente as perguntas da competição televisiva e conquistasse o prêmio de 20 milhões de rúpias. O documentário “Forman vs. Forman” (2019), dirigido por Jakub Hejna e Helena Trestikova e integrante da Mostra Competitiva do 25º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, possui a mesma premissa. Ao detalhar os primeiros anos de vida do diretor tcheco Milos Forman, quando teve os pais mortos em campos de concentração nazistas e foi obrigado a viver com famílias estranhas que nunca o acolheram, até atingir independência e iniciar os estudos sobre cinema, a obra idealiza a formação do artista como decorrente de uma série de incidentes que moldaram sua visão estética e de mundo.
Nesse espectro, crescer em uma Tchecoslováquia submersa na ditadura comunista teve o maior dos impactos. E esse fator é muito bem esmiuçado pelos diretores do documentário ao trazer à tona o tédio sentido por Forman e seus companheiros de profissão ao assistir os filmes feitos no país no pós-guerra, retratando banalidades e paixões artificialmente arrebatadoras. Em decorrência disso, o neorrealismo italiano teve grande significância tanto na obra quanto na vida do cineasta. “Ver e retratar em tela pessoas reais” parecia o mais nobre a se fazer por quem tinha o privilégio de comandar uma câmara em um país com cicatrizes ainda tão à mostra. Tal fator explica a negação de Forman em empregar atores profissionais em seus filmes no início da carreira. O documentário é cirúrgico ao trazer cenas de “Audition” (1963) e “O baile dos bombeiros” (1967) que comprovam tal decisão.
No entanto, Jakub Hejna e Helena Trestikova não parecem entregues à inevitável metalinguagem que poderia carregar os 78 minutos de “Forman vs. Forman”. O documentário altera constantemente entre vídeos-entrevistas antigos de um jovem e inconformado diretor para depoimentos de um mais maduro e ciente das próprias limitações e inquietudes. Não há, assim, apenas um filme dentro de um filme, mas, acima de tudo, um registro que se pretende fiel e benevolente, ainda que não seja nenhum dos dois, visto que Forman acaba espelhando nos filhos do primeiro casamento parte das mesmas vicissitudes que sofreu quando era criança: a falta do pai. Mas, nesse caso, tal ausência não é feita em virtude de um afastamento forçado e violento e sim em favor da realização artística e profissional do diretor na América do Norte.
Desta forma, o documentário parece não se dar conta – ou apenas não se preocupa em explorar – a contrariedade da fala dita pelo próprio Forman logo no início do filme: “Estou conscientemente tentando me analisar, porque tenho pavor de me tornar uma dessas pessoas autoindulgentes e autocentradas”. A franqueza exibida pelo diretor merecia um contraponto, um questionamento sobre suas escolhas pessoais, ainda que não tenham sido feitas – como dá a entender – apenas em benefício próprio. Da mesma forma, o embate, como o título do documentário sugere, não acontece. Pelo contrário. O Forman mais velho parece aprender e buscar o frescor do jovem experimentador de óticas e movimentos para consolidar o próprio legado, ainda que a finitude da vida seja um tema que lhe cause repulsa.
É curioso, portanto, vislumbrar Forman como, talvez, o mais humano entre os grandes cineastas do século 20. Ao menos é esse o esforço feito em vários momentos do documentário. O diretor vencedor de dois óscares por “Um estranho no ninho” (1975) e “Amadeus” (1984) define o seu eu do passado como o Antonio Salieri, vilão do segundo filme e compositor que “não reconhece a própria mediocridade diante de um poder divino (leia-se Mozart). No caso do diretor, tal supremacia é reconhecida pelo próprio nas figuras de Ingmar Bergman, Federico Fellini e Michelangelo Antonioni. “O único sentimento de superioridade que um cineasta tem é que ele é obrigado a brincar de ser Deus”, ressalta Forman em certo ponto. Por certo, deve-se também a ele o fato dos diretores serem considerados hoje em dia os grandes responsáveis pelo sucesso ou fracasso de um filme e não meros operadores de câmera.
No decorrer de “Forman vs. Forman”, Jakub Hejna e Helena Trestikova parecem interessados em listar curiosidades da vida do personagem-produto. Tais incursões são um prato cheio aos amantes de cinema. Um exemplo é o que motivou a escolha de Forman como diretor de “Um estranho no ninho” pelos produtores (Michael Douglas, entre eles). Os cineastas da época exigiam a assinatura de contratos antes de detalhar a maneira como pretendiam fazer determinado filme, ao passo que Forman minuciou aspectos sem ter qualquer garantia de que seria escolhido. “O Partido Comunista era minha enfermeira Ratched dizendo o que eu poderia fazer, o que falar ou não falar”. A busca pela liberdade pautou toda a trajetória do cineasta e a vida, de fato, o preparou para ser uma lenda.