Fluxo
O que poderia ter sido, mas não foi: o filme
Por Paula Hong
Um dos aspectos mais comuns à ficção científica é o de retratar a humanidade num futuro onde a obscuridade reina, e assim é possível — não que não o seja de outras formas — tecer ou suscitar embates críticos frente às ações governamentais totalitárias. Os primeiros minutos do filme anunciam uma realidade parecida, em que o governo parece utilizar-se de um aplicativo que mede os sinais vitais para detectar se alguém está infectado ou não e, assim, os dispositivos de controle da ultra direita orquestram uma tentativa de golpe de estado. Embora André Pellez anseie por essa distopia, seu novo filme, “Fluxo”, desvia-se da ideia inicial para representar os embates emocionais de um (ex-)casal, Carla (Bruna Guerin) e Rodrigo (Gabriel Godoy), confinado pela pandemia.
A obra faz o recorte de experiências forçadamente adquiridas por (quase) todos durante esse período, utilizando-se de notícias jornalísticas produzidas em tempo real durante a sua realização — discursos anti-vacinas, as crescentes ondas de “patriotas”, desinformação e negacionismo, além das adaptações de rotinas, e das relações interpessoais e com as telas: ligações de vídeo, conferências e reuniões remotas, flertes e sexo virtuais, terapia. O fenômeno das lives foi outro representado pelo personagem de Silvero Pereira, cuja função na história encapsulou os debates da oposição que enxergam o evidenciamento das desigualdades durante a pandemia.
No filme “Fluxo”, as telas asseguram os resquícios de relacionamentos previamente construídos, mas que parecem ser colocados em teste. O registro desse tempo adicionado ao combo descrito reacendem memórias pontiagudas de um trauma coletivo: olhamos para um passado não tão longevo, onde fomos forçados a repensar e reprogramar o jeito de estarmos no mundo.
Assim, o período pandêmico serve de pano de fundo para colocar em primeira camada um relacionamento já em declínio. No filme, o confinamento, tanto real quanto fictício, mostra-se antônimo de aproximação: Carla e Rodrigo afastam-se cada vez mais. Fato é que a proximidade física, mostrada pela locação e pelas circunstâncias de realização do filme, em que os atores têm de também filmar, parece trazer para a superfície as discrepâncias nas intenções dos dois — ela continuamente afirma não estar pronta para um relacionamento e ele, que insiste em tentar fazer dar certo. À medida que o tempo transcorre, as interações dão indícios de que algo parece caminhar para um desfecho feliz. Mas a próxima torna a afirmar que uma reconciliação não é possível. Se houvesse alguma, ela é enfraquecida pelas barreiras que Carla coloca nas investidas de Rodrigo.
Apesar do pouco tempo de duração de “Fluxo”, os diálogos supérfluos — exceto os de Silvero — com discursos já prontos e exauridos pela repetição trazem desconforto físico. Eles acompanham as atuações que não fornecem empatia o suficiente para com os personagens. Os momentos de alívio cômico, como nas ligações entre Rodrigo e seus clientes da terapia motivacional que desenvolve a partir de um livro de sua autoria, raramente funcionam. Mas mesmo na brevidade em tela, os clientes de Rodrigo são carismáticos o suficiente para levantar a curiosidade de como são suas vidas. A exemplo, um deles tem TOC e coleciona frascos de álcool em gel, e outra que mostra-se frustrada com o chefe, tendo de frear a impulsividade de xingá-lo.
Os questionamentos em torno do que acontecerá depois que a pandemia acabar poderiam render conversas interessantes, mas logo são interrompidos ou resumidos a desejos primários (e completamente compreensíveis): sexo e sair de casa. Com isso, “Fluxo” dilata um tempo narrativo que poderia ser encurtado. Os acontecimentos do ex-casal não são suficientes para manter o interesse pelo seu desfecho. A qualidade da obra é afetada não somente por uma trama fraca e pela ausência de química entre os atores, apesar de, à época, serem um casal, mas também pela tentativa de abordar uma reflexão sobre tempos de crise que não atingiram todos da mesma forma. Acaba por ser raso, insípido e, atrelado à escolha pela fotografia monocromática, cujo tom remete a um olhar sobre o passado, acaba por aterrissar no pretensiosismo.
Tendo em vista as atrocidades que ocorreram durante a pandemia e o pano de fundo do filme — muitíssimo mais interessante, diga-se de passagem —, a tentativa de representar um casal em crise parece uma piada de mal gosto, beirando a uma ofensa. “Fluxo” é um filme que oferece mais frustrações do que resoluções, e muito menos algum tipo de conforto em saber que nem todas as relações foram fortalecidas pelo confinamento obrigatório. A decisão de dar enfoque a esse recorte conjugal abriu margem para, na verdade, vislumbrar (algo muito praticado durante a pandemia) o que o filme poderia ter sido caso a distopia que, como sabemos, estava de fato em curso, tivesse sido abordada.