Curta Paranagua 2024

Flor do Equinócio

A próxima primavera

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 1958

Flor do Equinócio

A esposa de Kogu Noda, velho amigo e corroteirista de inúmeros filmes de Yasujiro Ozu, revelou a rotina de trabalho da dupla, nas montanhas de Nagano, em Tateshina. Escrever até tarde da noite, com saquê à vontade; acordar e, no café da manhã, tomar um ou dois copos de saquê; voltar a dormir por uma ou duas horas; depois, almoço tardio e, no fim da tarde, escrever o roteiro. O progresso dos trabalhos media-se pelo número de garrafas de saquê, cuidadosamente guardadas após o consumo. Nessa toada é que saiu “Flor do Equinócio”, mais uma pérola dessa coleção insuperável de pérolas que é a obra de Yasujiro Ozu – lançado em 1958, seu primeiro filme a cores. Como de hábito, sobretudo nos anos de 1950, o tema é a dissolução da família japonesa — lenta, quase imperceptível, no contexto traumático pós-guerra — revelada muito mais pelos efeitos que as pequenas turbulências provocam, como diz Donald Richie, do que pela exacerbada exposição de suas causas. Pequenos incidentes e confrontos sutis entre pais e filhos, seguidos ou não de conciliações, denunciam a natureza dos personagens, mostrando como eles agem e reagem.

Nesse filme, o pai se aborrece com o desejo de independência da filha. Ela quer escolher seu marido, sem consulta-lo: para os amigos, entretanto, ele mantém postura aberta e progressista, a favor dos casamentos livremente acertados. Um conflito geracional que o chefe de família internaliza sem se dar conta. A esposa (Kinuye Tanaka) administra a transição entre as duas polaridades, ela que se casou mediante arranjo acertado por seus pais. Sua temperança mitiga as arestas. Kinuye Tanaka, excepcional atriz (e também diretora), sutilmente opera o deslocamento do centro decisório da família, e rouba a cena.

Equinócio: é o momento em que os raios solares incidem sobre a linha do Equador, proporcionando distribuição uniforme de luz e com o mesmo período — tanto durante o dia como a noite. Os japoneses chamam Higanbana a flor símbolo do equinócio de outono.  É uma espécie de lírio – e um símbolo budista. Simboliza que, a partir do equinócio de outono, a noite se torna maior que o dia, o fim de nossa existência, o esfriar, a despedida, o esquecimento. Muitos dos títulos dos filmes de Ozu desse período remetem a estações do ano, a intervalos particulares das estações. Combinado ao uso regular dos mesmos atores e atrizes, terminaram por configurar uma espécie de microcosmo onde personagens e ambientes se comunicam, interpenetram e complementam.

Naquele tempo circulava uma anedota nos estúdios da Shochiku sobre o título do novo filme de Ozu: seria “A próxima primavera”, onde todos finalmente se encontrariam. O próprio diretor se encarregou de divulgar a piada. Não é para menos. Vistos em conjunto, os filmes passam a sensação de que tudo acontece, mas não saímos da mesma fase, da mesma onda. O filme acaba, mas parece continuar, em outro lugar que já estivemos.

Flor do Equinócio” é resultado dessa mescla enigmática de rigor e ironia: Ozu era obsessivo desde a confecção do roteiro, as falas são absolutamente sintéticas e objetivas, integrando-se de forma indelével na fluidez da linguagem, na respiração do filme. Em uma atmosfera de austera simetria formal, com uso dominante de planos médios, a imersão da audiência nos diálogos e na trama é (quase) integral, sem pausa ou tempo morto. Ao mesmo tempo, nenhum ator ou atriz se destaca em demasia em relação aos demais: em suas incontáveis repetições dos takes, este era um ponto inegociável. A obsessão passava para mise-en-scène, na repetição exaustiva dos gestos e expressões. Os filmes de Ozu fornecem exemplos de atuação em conjunto em sua forma mais pura.

E o uso da câmera? Richie, o decano dos intérpretes ocidentais do cinema japonês, e em particular de Ozu, ressalta: é sempre uma tomada tirada do nível de uma pessoa sentada de forma tradicional no tatami. Seja dentro ou fora, a câmera está sempre a cerca de um metro do chão, e quase nunca se move. Essa é uma das marcas registradas mais conhecidas de Ozu. Sua famosa autodefinição – sou um fazedor de tofu, assado, cozido ou frito, outros fazem coisas mais caprichadas – é um signo de modéstia, mas também um manifesto cinematográfico das premissas que utilizava, exibidas em a “Flor do Equinócio” com a clareza que a depuração dos anos proporcionou.

Um fazedor de tofu, mas sofisticado: para ele, todo filme que se destaca cria sua própria gramática, não existem regras a priori. Situações óbvias de transbordamento emocional, como casamentos e funerais, são melhores quando evitadas: as emoções estão nos pequenos detalhes, nos diálogos (e monólogos) íntimos. Fade in e fade out, pontuações clássicas, são como páginas em branco inseridas em um livro, portanto desnecessárias. Cinemascope, nem pensar: para Ozu, lembra um rolo de papel higiênico.

Ozu faleceu no dia 12 de dezembro de 1963, data do seu aniversário, com 60 anos, vítima de câncer na garganta. Kido Shiro, seu produtor na Shochiku, ouviu dele nos últimos dias: bem, parece que tudo isso é mesmo um drama familiar.

5 Nota do Crítico 5 1

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