Firebrand
Um manifesto para sair das sombras
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Há uma regra implícita no mundo do cinema de que nunca se deve impedir que seus realizadores façam voos maiores. Que experimentem novas linguagens, novas geografias, novos desafios e outras narrativas. Especialmente se falarmos em diretores brasileiros. Esse desbravamento pode gerar consequências curiosas e/ou expôr limitações padronizadas. Karim Aïnouz é um deles. Não por morar em Berlim há muitos anos, tampouco por querer conhecer mais os costumes comportamentais de sua terra natal, mas sim por se aventurar agora em outra seara. A de um cinema de época com atores internacionais. “Firebrand”, exibido aqui na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023 (o único filme de um diretor brasileiro e cearense), é seu ousado voo ao abordar o mundo histórico e aristocrático da Realeza, com os atores Jude Law e Alicia Vikander.
Baseado livremente no romance “O Gambito da Rainha” de Elizabeth Fremantle, “Firebrand”, no roteiro de Jessica Ashworth e Henrietta Ashworth, vem para conjugar esse novo com o estilo já conhecido de Karim, que é criar a intimidade orgânica, porém distante, cujo drama das personagens acontece no interior, protegendo o público de uma possível sinestesia. Ao interferir essa abordagem no gênero histórico, que tem a característica de se comportar mais como uma novela de época, o longa-metragem pende entre superfícies. De um lado, a própria organicidade ficcional em traduzir os bastidores “sórdidos” e segredos de uma família real, entre impulsos, idiossincrasias, excentricidades, instinto, poder, ego e sobrevivência.
É inevitável não se buscar referências a outras obras desse gênero de intimidade da aristocracia. Sim, em “Firebrand” há o tom histórico que inerentemente precisa ser mais romanceado (pois é, não podemos compará-lo a “A Favorita”, que muda o approach e é um ponto fora da curva, tampouco à série “Downtown Abbey” e muito menos a “The Crown”, mas está mais próxima a série “The Tudors”, esta também baseada no Rei Henrique VIII da Inglaterra). Sim, ainda assim senti falta de mais Karim Aïnouz e seus traços característicos (um deles de se desenvolver dentro da criação de uma ambiência de estética orgânica-cotidiana, que inclusive permite a suas personagens reações com mais improvisos espontâneos na própria coloquialidade real da ficção). Talvez isso se explique por esse filme não ser uma obra tipicamente brasileira e sim do Reino Unido e/ou talvez essa nossa sensação de não encontrar uma maior liberdade criativa tenha a ver com o fato de toda essa produção ser internacional e pautada em muitas regras, políticas e formas próprias. Ainda que Karim, na coletiva de imprensa e na entrevista exclusiva ao Vertentes do Cinema, diga que teve todo o controle na direção, nós percebemos um engessamento podado, racional e teatralizado demais.
É como se “Firebrand” estivesse preso a uma padronização narrativa, numa zona de conforto limitada de até onde se pode ir, visto que há no elenco os atores internacionalmente conhecidos (o que gera mais pressão e mais vulnerabilidade da criação), ainda que o britânico Jude Law (o protagonista Rei Henry VIII – esteja em uma entrega absoluta em sua interpretação método); e a sueca Alicia Vikander (que vive Katherine Parr, sua última esposa – a atriz substituiu a atriz Michelle Williams, que ficou grávida antes das filmagens), sejam atores que buscam sair de todo esse mainstream blockbuster, escolhendo papéis mais desafiadores. Sim, nós percebemos isso em inúmeras curiosidades de seus processos de construção de suas personagens. Numa delas, ficamos sabendo na coletiva de imprensa que Jude Law usava um perfume que cheirava a “sangue, matéria fecal e suor” por achar que “teria um grande impacto se eu cheirasse mal”, disse.
Sim, mas “Firebrand” não é sobre o Rei e sim sobre a Rainha. E nisso, Karim Aïnouz entende muito bem como é retratar todo esse universo feminino, que é imerso em culpa e em comportamentos esperados de que essas mulheres precisam ser apenas sombras históricas. “Meu nome é Katherine Parr. Tenho 31 anos e já viúvo duas vezes. Estou apaixonada por um homem que não posso ter e estou prestes a me casar com um homem que ninguém iria querer – pois meu futuro marido não é outro senão Henrique VIII, que já decapitou duas esposas”, é assim que o livro começa, com um tom muito cinematográfico e já com a estrutura pronta de uma novela de época, apesar de ser rico em detalhes, estes que conduzem pistas a novas ações situacionais. Para concluir, “Firebrand” pode sim ser um manifesto feminista de uma rainha que luta contra todos para manter suas convicções.