Fim de Semana no Paraíso Selvagem
O luto e o lucro
Por Pedro Sales
Mostra de São Paulo 2022
Voltar para onde viveu a infância quase sempre é uma experiência agridoce. Um dulçor pelas memórias criadas e a saudade de um tempo certamente mais simples, mas com um amargor da certeza de que tudo aquilo já passou e não pode retornar. Quando o retorno à casa se dá em um contexto de luto, porém, mais emoções estão envolvidas, e a fragilidade emocional é aumentada. Em “Fim de Semana no Paraíso Selvagem“, filme dirigido pelo pernambucano Pedro Severien – ou simplesmente Severino, como o artista assina nos créditos –, a protagonista lida com a morte recente do irmão, com quem não tinha muito contato, e as incertezas por trás desta perda. Neste sentido, o cineasta muitas vezes rompe com o drama tradicional do luto indo em direção das convenções do cinema de gênero, aqui o suspense, especificamente. Fato esse que garante uma versatilidade dramática à obra.
Rejane (Ana Flávia Cavalcanti) volta, anos depois, para a cidade onde cresceu com a mãe e o irmão Rodrigo, recentemente falecido. As circunstâncias da morte do irmão ainda são obscuras a ela. Ele, exímio mergulhador, supostamente morreu afogado enquanto fazia uma trabalho. Neste retorno, além de tentar reconstituir a causa mortis verdadeira, a protagonista ainda deve lidar com o espólio deixado pelo irmão, dar um fim aos seus bens em meio a interesses externos. Tendo em vista essa premissa, a obra se estrutura em um tom sempre presente de tensão. A trilha sonora, neste sentido, sempre induz a ansiedade no espectador, levando-o a esperar pelo pior. A introdução é, talvez, o melhor exemplo de como o diretor constrói a atmosfera de suspense. Ainda no escuro, figurado (não conhecemos a história) e literal, a casa sem iluminação alguma não é das mais convidativas, tampouco o único morador, o saruê – timbu em Pernambuco – que é morto com um tiro. Em todo momento há tensão, mas essa cresce quando Rejane abre a porta e conhece o verdadeiro perigo.
De certa forma, o início de “Fim de Semana no Paraíso Selvagem” consegue sintetizar do que se trata o longa: dinâmicas de poder. Nem o que acontece em âmbito privado consegue escapar do mando da doutora Maristela (Joana Medeiros), figura emblemática da região. O capanga dela, em certo momento, diz que tudo está tomado pelo tráfico e pela bandidagem, mesmo ele sendo símbolo de uma própria força de segurança privada que mais se assemelha à milícia. Portanto, a insegurança transmitida nos minutos iniciais jamais cessa e é com isso que Rejane deve lidar para tentar descobrir o motivo da morte do irmão, ao conversar com Júnior (Eron Villar), e dar fim à propriedade dele. Existe uma carga simbólica também neste retorno da irmã. Médica legista, ela só se reaproxima do irmão na morte, assim como o é com os pacientes do Instituto Médico Legal (IML). E em meio a isso, há a incerteza e uma certa impotência, pois ela, mesmo capacitada, não pode examiná-lo. Diante dessa conjuntura, a protagonista traça uma jornada de rastros incertos, cada diálogo parece uma oportunidade para se descobrir mais.
Assim, muitos personagens são meramente orbitais, servem apenas para que Rejane avance em sua investigação particular. Nisso, Severino propõe uma abordagem que transita entre o naturalista e o dramatizado, que também se estende ao contraste social proposto por ele. A rima em cima do morro exala uma carga documental muito tangível. Com a câmera na mão, o foco vai de um para o outro conforme os versos são ditos, tendo ao fundo o pôr do sol. Em contrapartida, quando Rejane visita a mansão de Maristela existe um cuidado maior, quase dramático com o que é dito, conversas de meias palavras. Quem melhor consegue transitar entre as abordagens de uma maneira menos abrupta e mais orgânica é Ana Flávia Cavalcanti, que possui uma performance muito uniforme ao longo do filme, seja na insatisfação da ausência de respostas ou na tensão de se estar no carro com um capanga imprevisível. Nesta cena em específico, inclusive, o diretor novamente demonstra um controle tonal bem delimitado pela mise-en-scène. A câmera fixa no banco de trás e o escuro inerente a cena reforçam a incapacidade de reação e a claustrofobia.
“Fim de Semana no Paraíso Selvagem” é um conto de um mundo em desencanto, marcado entre o luto e o lucro. A especulação imobiliária que se prostra como uma força de apagamento cultural e individual parece vir de antes, como Naná (Zezé Motta) conta à Rejane, lembrando da morte da mãe dela e de Rodrigo. Portanto, Severino traz por meio da montagem o contraste social da cidade, de Paraíso para Novo Paraíso. Os planos alternam as subidas na periferia com a casa beira-mar ricamente iluminada. Neste sentido, o filme constrói imagens de muito impacto visual. As caminhadas na praia que são filmadas com travellings, por exemplo, contam com uma baixa exposição em razão da noite, mas com a iluminação ao fundo dos estaleiros e cargueiros, da atividade que traz dinheiro à cidade. Esse uso pontual da luz também se faz presente em outros planos com composições habilmente simétricas, a conversa com Naná, o corredor do prédio. Vencedor do Festival Guarnicê 2023, o longa parte de um registro que vai do micro ao macro, o individual – a morte do irmão – para o geral – projeto de enriquecimento e gentrificação do paraíso litorâneo. Com um ritmo mais dilatado, a obra leva seu tempo para trazer esses temas à tona, com a urgência maior quando pende ao suspense, e opta por manter a incerteza como constante.