Filho de Boi
Se Joga João
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2020
O subdesenvolvimento brasileiro tenta impedir o sonho do povo, seca as possibilidades e finda em dor as tentativas da realidade. O materialismo constrói a História de dependência e opressão de um país que falhou em seu processo, um projeto natimorto. “Filho de Boi” de Haroldo Borges é um filme que vai de encontro às faces de como o lúdico é uma forma de tentar mascarar ou mesmo performar o vazio de seu protagonista. De um lado a opressão social, do outro o pai que tenta prepará-lo para o mundo (com repressão e ausência, causa de um luto jamais superado), o sonho impossível e a cobrança do que é ser “homem”, ter um “emprego” de verdade, “deixar de ser menino”. Os links possíveis com “Jonas e o Circo Sem Lona” são inúmeros, não à toa o roteiro também leva o nome de Paula Gomes e para a felicidade dos brasileiros, Jonas, está no longa.
Confesso ter sentido uma enorme alegria ao perceber sua presença.
Ainda que isso signifique que a ficção se torna uma via menos amarga do que a realidade do país. É o caso de João, que é pressionado em apresentação ao confronto fatalista da realidade, memória e trauma. O longa não poupa uma interpretação contundente, onde o grau de esperança é o arbítrio do retorno, do abandono. O livre arbítrio cristão é uma miragem burguesa que não existe no subdesenvolvimento. E o próprio título do filme, “Filho de Boi”, é a chaga que o protagonista carrega durante todo o processo dramático, mas como uma marca que o materialismo livra o fardo do calvário imposto por uma sociedade que ironiza a realidade. Assim, o projeto não sustenta o singelo olhar durante boa parte da sua projeção, negando como quem possui medo da realidade e do sonho que essa cria.
E nessa faca de dois gumes que o filme se articula, reconhecendo a dor como via única onde o pedágio é encarar a realidade, mas com a possibilidade (ir)real de uma fuga possível a partir do tom lúdico de ser palhaço. A superação aqui é encarar com dignidade. Orgulho é luxo. Ser criança é um sonho distante que tudo ao redor tenta minar para uma opressão, em camadas diversas. A linguagem acompanha esse processo dialético entre essas duas frentes de uma encenação, transitando entre uma realidade direta, concreta, jamais sacramentada e uma proposta de poesia cruel, onde a câmera, a fotografia e a montagem constroem um extraplano da realidade. E aqui, reconhecendo a força da geografia como palco dessa estrutura, os planos gerais que mostram o ambiente, os cortes rápidos para o circo que constrói uma base material que não se diferencia do restante, mas permite, ao menos, que por alguns momentos, possamos esquecer que a crueldade de um processo falho e dependente do país da ditadura burguesa, ainda reina.
“Filho de Boi” possui alguns paralelismo que desnorteiam seu eixo central, algumas cenas realmente descartáveis, mas nada que comprometa a experiência. Não à toa, o espectador pode levar o filme para depois da exibição, lembrando de cenas e em especial de um final que é duro pela realidade crua que surge à tona a partir de uma música extradiegética, aparecendo de uma figura paterna à outra, mediação de memória, em solo árido e o desespero de quem não se reconhece no mundo. João Pedro Dias é uma estrela cadente no filme, aparecendo como ponto chave na construção emocional que o filme propõe. Um sorriso de João, descarta qualquer fala. Luiz Carlos Vasconcelos faz um personagem de poucos carinhos (ainda visíveis) que rouba a encenação para seu tom amedrontador, com o tempo é possível sentir parte de seu luto, lembrando aquilo que Kratos disse ao filho “Não confunda silêncio com indiferença”. E Vinicius Bustani é carismático mas carrega consigo a fuga desejada com a impossibilidade de concretizar esse sonho.
“Nem é cedo demais pra saber
Que a vida é desgraçada aqui
Meu filho, amor
Tem dessas coisas
Rudes” – Djonga, O cara de Óculos.
“Filho de Boi” é um retrato honesto, sincero e potente de uma cinematografia que encontra seu lugar neste ano de 2020 e ganha destaque com os outros projetos.