Fernanda Young – Foge-me ao Controle
Forever Young: o epitáfio de uma vida mais no existir que no ser
Por Fabricio Duque
Durante o É Tudo Verdade 2024
Não, nunca soube explicar o porquê dos documentários da realizadora brasileira Susanna Lira ficarem flutuantes por tanto tempo em nossas mentes. Talvez isso se explique por conta da escolha orgânica-coloquial de suas personagens reais. Talvez por permitir uma condução mais empática da narrativa, que as enxerga com liberdade suficiente, e sem julgamentos, para deixar serem o que já são, mitigando todo e qualquer filtro social que as distanciam de suas verdades. Talvez por construir obras de identificações mútuas, em que essas personagens conseguem expôr características genuínas e idiossincráticas, escondidas, de Susanna Lira. Talvez todas essas experiências de tentativas de traduções-definições representem uma terapêutica descoberta em forma de filme. E mais, ao trazer isso, nós somos estimulados a possibilidades de renovar nossas próprias vidas já concretizadas dentro de nossas covardes zonas de conforto. Essas personagens abordadas, apesar de todos os holofotes, colocam para fora, à frente das câmeras, apenas o que conseguem ser para elas mesmas. É dessa forma que Susanna Lira trabalha. E em sua mais recente obra “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, que integra a mostra competitiva brasileira do Festival É Tudo Verdade 2024, não poderia ser diferente.
“Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, longa-metragem que aborda vida e obra da escritora Fernanda Young (como se define), é um epitáfio dessa artista, não só por resumir sua existência externa (a que todos conhecem e a que ela quer mostrar), mas por deixar em aberto e de forma sugestiva uma infinidade de possibilidades de vidas aproveitadas ou deixadas para trás. Susanna Lira buscou aqui evocar Fernanda Young pela construção de uma narrativa ambientada na metafísica, no sensorial, no etéreo e em psicodélicas viagens mentais, para assim ser a mais fiel possível à estética criativa dessa “caótica” personagem biografada, entre cenas de seus trabalhos realizados e cenas de filmes antigos dos anos vinte e quarenta, como Maya Deren. Tudo aqui é para ser um transe, especialmente quando a imagem encontra e se funde ao que se escuta de Fernanda Young: leituras de seus textos pela atriz Maria Ribeiro e suas entrevistas antigas. Sim, a impressão que temos é que este é um filme-livro em movimentos poéticos de verborragia imagética. É aí, neste exato momento, que “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” ganha tradução em contraste literal e paradoxal de toda sua individualidade existencial.
O documentário também não deseja apenas a superficialidade das ideias transgressoras, tampouco de ser um filme militante sobre a liberdade de um mulher em um mundo repleto de poderio machista, “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” é na verdade sobre a libertação (pelo ouvir) de um ser humano enquanto indivíduo integrante de uma sociedade de “idiotas”. “A reclamação é um movimento otimista”, “ensina” a única coisa a ser feita. A obra também a ouve com respeito, com o entendimento de que existe sim a pluralidade argumentativa. Fernanda Young talvez seja a mais completa das personagens, por confessar o que é sem o medo dos olhares tortos dos outros. Assume-se como “disléxica, irônica, dúbia, charmosa, aflita, mitológica, maldita, egocêntrica, melancólica, anti-Monalisa” e “gosta de ser lambida pela coragem”. E por nunca “omitir”, por ser dos “fracos”. Ela também não esconde que suas histórias são como fuga e que sempre voltam aos temas do amor, do tempo e da morte (“a mesma coisa: a interseção que nos iguala”). Ao ouvi-la, em seus “raciocínios labirínticos”, “indo e voltando”, como “poesias em forma de comunicação”, recuperamos mais nosso lado humano de sentir mais a simplicidade de nossas existências. Nos tornamos normais ao naturalizar nossas possíveis “falhas”, “afogamentos” e “pesos na alma”. “O amor é lindo, principalmente se você acordou se achando feia”, diz. Sim, aprendemos que é legal ser “alguém muito incomum”, até melhor.
Toda a estrutura construída de “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” nos conduz à poesia de coloquialismo universal das conexões traduzidas, como por exemplo, quando Fernanda diz “Fui saindo de mim para deixar os outros entrarem”. É real. Há uma presença invisível de linguagem “quântica”, surreal, de nossos quereres mais internalizados, numa eterna busca pela leveza e pelo equilíbrio. De uma visão quase “como Deus”, quase como uma câmera, em que “o vazio é repleto de divino”. Cada vez que adentramos na vida dessa escritora em questão aqui mais nos damos conta que são poucos os artistas de autoralidade única. Durante todo o filme não parava de referenciar outros criativos e inquietantes seres que povoaram o mundo literário e da experimentação mais performática. Fausto Fawcett, Hilda Hilst, Clarice Lispector, cada um desses “criadores” se pautava integralmente por suas obsessões, neuroses, psicologismos, excentricidades, exotismos e vulnerabilidades sociais. A de Fernanda Young era ser punk. Era pintar os cabelos com todas as cores e em todos os tamanhos. Era ser militante de um amor “democrático”. De preferir falar a verdade (“mais anárquica”), porque a “mentira cansa”. De entender que a vida está “entre dois gritos” contra a cafonice. Seus trabalhos são direcionados a “pessoas quebradas”.
Como disse, “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” é também sobre “o que é ser uma garota”, mas o foco está na essência, na transmutação das ideias de um indivíduo em ser perpétuo, em espectro fragmentado, em partícula eterna. É isso que Susanna Lira quer chegar nessa criação. Este filme é uma epifania-mantra “forever young”, pela poesia desnuda, por pinturas-movimentos a la Andy Warhol, por cortes cirúrgicos. Sua maestria está quando somos sugados a um retrato deste mundo que se retrata. Sim, depois de tudo, podemos mesmo dizer que Susanna sempre foi Fernanda. E ao ter esse universo semelhante fez neste documentário uma extensão dela mesma, em uma “cisão de maternidade” artística das duas. “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” é um filme para fugir literalmente do controle, para que assim, na loucura surto do momento, reencontrar a essência-inocência perdida de uma existência “abduzida” por uma sociedade completamente fora de suas faculdades mentais.