Fechar os Olhos
Cinema, memória e a conservação do que se esvai
Por Paula Hong
Festival de Cannes 2023
A busca pela permanência do que resta perante à inevitabilidade da morte, o envelhecimento, a força da imagem (estática, em movimento), a latitude esmagadora do tempo, a materialidade da memória, a saudade, a possibilidade de uma perda irrecuperável, a dor, a esperança, o reencontro — o voltar para si, o olhar para si, o olhar para dentro de si mesmo por intermédio do cinema. Se me pedissem para tentar resumir “Fechar os Olhos” em poucas frases e palavras, é assim que o faria, embora não há verbalização o suficiente que faça jus à maturidade com que Víctor Erice trabalha, de modo bastante simples e com muita ternura, a confluência de acontecimentos e reunião de testemunhos de uma vida que desvanece diante dos nossos olhos.
Erice estabelece na obra uma conversa direta com o cinema desde o começo. A cena que abre o filme é, como explicado mais tarde, um filme que jamais fora terminado pelo diretor/escritor Miguel Garay (Manolo Solo) em razão do desaparecimento abrupto do ator principal e seu amigo de longa data, Julio Arenas (Jose Coronado). O filme é intitulado “O rei triste” e, nele, Julio é um detetive particular contratado por Levy (Josep Maria Mou), com a sentença de morte já declarada pelo médico, para ir à China e achar sua filha Qiao Shu (Venecia Franco), como seu último desejo para ver a única pessoa que carrega seu sangue.
Mesmo que Erice faça breves referências e comentários sobre o cinema em cenas pontuais, como quando menciona, logo no começo, “The Shanghai Gesture” (1941), de Josef von Sternberg, quando Miguel folheia um folioscópio que anima “A Chegada do Trem na Estação” dos irmãos Lumière, o personagem Max (Mario Pardo), montador do filme de Miguel, que insiste em resguardar a materialidade da imagem em seu acervo particular de películas, e, mais para o fim, quando faz uma piada com menção ao cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer, é com a primeira cena, descrita no parágrafo anterior, que o diretor conjuga uma linguagem cinematográfica saudosista, com planos, em sua maioria, médios e próximos, e poucos planos abertos, apoiados a cortes suaves e respeitosos quanto ao tempo de duração de cada cena. Percebe-se que o tempo é filtrado pela amplitude de sua duração, ao passo que a passagem é dotada de fluidez que sustenta a serena da memória e dos reencontros ao longo do filme.
Com isso, “Fechar os Olhos” trabalha constantemente a materialidade da imagem e da memória conservada no retrato gracioso da forma com que a ficcionalização da busca e do reencontro respinga na vida real. Miguel Garay, como o personagem que escrevera pensando em Julio, toma para si o papel de investigador do desaparecimento (não solucionado) de 20 anos do amigo, muito demarcado pelos reencontros com aqueles que ainda detêm lembranças de Julio, como também pela revisita dos objetos de cena de “O rei triste” — o sobretudo da figuração característica de detetive vestido por Julio, o qual também veste, as fitas dos ensaios com ele — e demais objetos que atestam outras perdas, mas também o saudosismo delas, como a fotografia com seu filho, ou quando acha num sebo, à luz do acaso, um livro que escrevera e que havia dedicado à Sandra (Petra Martínez), um amor do passado compartilhado com o amigo. É nessa constância do ato de olhar para o passado que a busca de Garay torna-se perene.
O peso do passar do tempo é outro elemento focado no decorrer da obra. A impressão do desaparecimento de Julio, deixada na vida daqueles que estão de uma forma ou de outra ligados a ele, se comporta diferente, sendo restaurada pelos esforços de Miguel que, de pessoa em pessoa, reconstrói as camadas de identidade de Julio: o Julio amigo, o Julio pai, o Julio amante, o Julio ator, o Julio marinheiro, o Julio goleiro, o Julio professor de tango. Cada lembrança-camada dada ao longo do filme é confirmada nos traços remanescentes de um Julio que perdera a identidade. A suposição cinematográfica de Miguel é colocada como se o desaparecimento fosse consequência de uma decisão deliberada quando, na verdade, é muito mais trágica: se deu porque ele abruptamente perdeu a memória, embora indícios dessa perda já existissem de maneira sutil como também exposto pelos diálogos do filme.
Portanto, esse contraste entre quem lembra e quem não lembra traz um tom melancólico que perdura até os momentos finais da obra. O milagroso reencontro é acompanhado pelo sabor agridoce do não reconhecimento de Julio. O seu olhar, revestido por uma camada de neblina do esquecimento, o impede de reconhecer familiaridade nos rostos de quem já fez parte de sua vida. Não é possível atiçar o estalo que o fará retomar consciência de si mesmo, da sua própria identidade. Mesmo quando Miguel é capaz de despertar as reminiscências de sua identidade fragmentada, não há sucesso ao fazer Julio enxergá-las como parte dos aspectos formativos que atendam às memórias colecionadas durante a obra.
Por fim, a ciclicidade de “Fechar os Olhos” — começar e terminar com cinema. Miguel recorre à sua materialidade, ao seu poder de conservar a imagem de um Julio que não existe mais como a última tentativa de trazê-lo de volta. Ele projeta as cenas de “O rei triste” e, no escuro da sala de cinema, os personagens do filme dentro do filme os encara e nos encara também, segurando uma troca de olhares que parece implorar pelo reconhecimento.
As associações da incorporação de papéis são simbólicas: Miguel torna-se o detetive, personagem de Julio, que consegue achar o amigo. Este torna-se Qiu Shu, mas fecha os olhos como Levy, que morre. Em “O rei triste”, a filha reconhece o pai. Em “Fechar os Olhos”, não sabemos se a expectativa é suprida, se Julio finalmente recobre a memória. O que é possível presumir no final aberto é que o ato de fechar os olhos o faz voltar para si mesmo, sem a influência das imagens de um Julio que tentam recuperar.