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Fauda

Caos e cumplicidade

Por João Lanari Bo

Fauda

A série “Fauda”, produzida em Israel e exibida na Netflix, ganhou uma trágica e inesperada atualidade – no sábado, 7 de outubro de 2023, militantes do Hamas lançaram uma cortina de foguetes armados de bombas sobre Israel, e dezenas deles invadiram localidades próximas à Faixa de Gaza, alguns através de parapentes, outros furando a cerca que rodeia o exíguo território, onde vivem 2 milhões de palestinos. Centenas de israelenses foram assassinados, muitos tomados como reféns: a resposta de Israel, a julgar pelas (incontáveis) crises análogas no passado, deverá ser brutal e assimétrica. A dimensão da atual escalada de violência assustou até os observadores experientes no assunto, e não são poucos – o conflito israelense-palestino atravessou o século 20 e intensificou-se no 21. A série em questão estreou em 2015, produzida pela emissora Yes, de Tel Aviv, e no ano seguinte alcançou distribuição global no streaming mais popular do planeta. São quatro temporadas disponíveis – e a quinta, em cogitação desde o início do ano, certamente será realizada, à luz do evento em curso.

O parágrafo acima é, obviamente, um curto e grosso resumo de um estado de coisas complexo e de dificílima apreensão – sobretudo se o que se pretende é uma visão objetiva e imparcial. Como representar numa obra de ficção uma tal complexidade? “Fauda” reproduz o ponto de vista do ocupante, Israel, que expandiu fronteiras e expulsou palestinos de suas casas – a maioria da população de Gaza é de refugiados da sucessão de guerras que começou em 1948. Estamos no que se convenciona chamar de “contraterrorismo como entretenimento”, subgênero do caudaloso universo das séries que exploram violência a partir de movimentos políticos rebeldes. Mas aqui, com uma diferença: ao contrário dos estereótipos da igualmente caudalosa produção que explora o terrorismo de muçulmanos radicais, nos deparamos com personagens palestinos em papéis importantes e consistentes, interpretados por atores que têm o árabe como native language – em alguns episódios, mais da metade das falas são em árabe, o restante em hebraico. Muitos desses atores e atrizes são cidadãos israelenses de origem árabe, outros palestinos que vivem no exterior.

E os personagens israelenses? Podem não respeitar os limites de suas funções, e até trair seu parceiro com a respectiva esposa. O enredo gira em torno dos integrantes da Unidade 8200 das Forças de Defesa de Israel, voltada para atividades de inteligência. Todos são bilíngues em árabe e hebraico. A crítica na mídia ocidental qualificou o tratamento do roteiro como “humanizante”, pensado para atenuar o clichê habitual dos “durões” e introduzir angústias e fraquezas nos personagens, humanizando-os. Claro, tudo isso tem limites: a série nunca se afasta da visão israelense do conflito, e tende a identificar os agentes do contraterrorismo como heróis aos quais são permitidos comportamentos abusivos. Os demais, os palestinos do Hamas, parecem imbuídos de uma humanidade calçada no código islâmico, geralmente contaminada pelo fanatismo.

Esse aspecto – israelenses falando árabe como se fossem árabes – é o toque sutil que sugere um estranhamento para espectadores desavisados. Muitos desses israelenses cresceram falando árabe em casa, como Lior Raz, que encarna o principal personagem, Doron, e é também um dos idealizadores da série – ele é filho de judeus iraquianos que emigraram para Israel. Outros descendem de famílias que faziam parte do universo multirreligioso da região. Em meio a sequências de violência e terror, pontuadas de sexo e romance, essa sonoridade ambígua faz com que os integrantes da Unidade 8200 se posicionem como o pelotão avançado da ocupação, aquele que transita entre Israel e territórios ocupados (Gaza e Cisjordânia) com familiaridade. De certa maneira, esses personagens, sobretudo Doron, com seu caráter impulsivo e rude, são exemplos que caracterizam a sociedade israelense contemporânea – multiétnica, com imigrantes judeus de distintas origens, inclusive países árabes. A atual ascensão da extrema direita em Israel pode ser vista como sintoma dessa situação.

E não é apenas na força bruta que se manifesta esse aspecto – um dos personagens, o Capitão Ayoub (interpretado pelo ator israelense e ex-drag queen Itzik Cohen) usa seu árabe fluente para conduzir interrogatórios perturbadores, explorando fraquezas e divisões internas entre as diferentes facções palestinas – como faz ao pressionar a esposa de um líder do Hamas para entregar o marido, ou ameaçar uma jovem viúva palestina grávida de aborto, caso ela não revele o paradeiro do cunhado.

Fauda” deve sua receptividade à cumplicidade que consegue instalar entre a audiência e a violência ficcional a ser consumida, por meio de dispositivos emocionais como empatia e ansiedade, e mesmo voyerismo. Cumplicidade, em última análise, que influi em nossa percepção sobre as resistências e opressões que se passam naquela região conturbada do mundo. Até mesmo quando a realidade, mais uma vez, atropela a ficção.

3 Nota do Crítico 5 1

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