Euller Miller Entre Dois Mundos
Inclusão Conclusiva
Por Jorge Cruz
Mostra Sesc de Cinema 2019
Para ser inclusivo um documentário como “Euller Miller entre Dois Mundos” precisa dialogar diretamente com a sociedade ao mesmo tempo em que dá voz ativa a quem se faz representar na obra cinematográfica. Quanto a isso, essa produção selecionada para a 3ª Mostra Sesc de Cinema é bem sucedida na potência máxima. Porém, é cediço que uma manifestação artística se estabelece dentro de uma complexidade de ações, nela incluindo um certo tom de desafio de linguagem ou na estética. Nesse ponto, o documentário peca por apostar apenas na segurança de uma narrativa simples, como se suas boas intenções e eficiência no arco de entrevistados fossem suficientes para transformá-lo em fundamental.
Euller Miller é um jovem estudante de Odontologia da Universidade Federal do Paraná. Ao ser aprovado no vestibular, ele terá que sair do seio de suas raízes, na aldeia da etnia Kaiwá em Dourados, Mato Grosso do Sul, para obter essa tão importante graduação. O simbolismo do prédio da UFPR em nossa conjuntura social e política faz da obra quase ficcional, de tão perfeita que é sua ambientação. Mesmo assim, o diretor e roteirista Fernando Severo não cria nenhuma situação de desconforto – seja para a produção, o protagonista ou o espectador. As poucas vozes dissonantes, carregadas de xenofobia e discriminação, se materializam em depoimentos do próprio Euller e outros habitantes da aldeia dos Kaiwás.
Questionamentos sobre o bom uso da tecnologia e até mesmo roupas, apesar de ser a modalidade mais rudimentar de preconceito, ainda se fazem presentes na sociedade brasileira. Todavia, “Euller Miller entre Dois Mundos” opta por ser mais afirmativo, propondo uma inclusão conclusiva muito valiosa para o público-alvo que um festival aberto tenta atingir. Essa voz direta em um discurso simples faz a primeira metade do longa-metragem bem conectiva, apenas perpassando os dramas da vida do protagonista. Euller é um jovem que se encontrou com sua ancestralidade muito cedo e agora se esforça para realizar o intercâmbio cultural que tanto se espera na heterogenia da constituição do Estado brasileiro. Esse alinhamento se reflete em uma espécie de decisão editorial de um documentário que preza pela informação.
Nessa proposta de se valer do expediente das ditas “cabeças falantes”, uma cronologia cansativa, permeada com intervenções de representantes da instituição de ensino que – se não tornam o filme um produto cinematográfico arrebatador – o preenchem de apelo junto ao espectador mais curioso. Há uma intervenção musical com um espaço dedicado ao rap e curiosamente outra produção selecionada para a mesma mostra de cinema abre esse debate, “Orin: Música para os Orixás“. É quase como um aviso de que as novas gerações querem, acima de tudo, unir os costumes e tradições de seus ancestrais ao que de mais contemporâneo a cultura popular possa fabricar.
A grande questão em “Euller Miller entre Dois Mundos” é que nessa ambientação carregada de informação e formalismo, sua dinâmica enquanto cinema perde espaço para um produto que remete mais a uma longa (e boa) reportagem. Em sua proposta de reverberar a importância da política de acesso aos grupos silenciados nas instituições públicas de ensino (e ao complementar auxílio financeiro que evita a evasão dos alunos), não encontra uma maneira de balancear essas questões. Quando tenta, ao ultrapassar o acolhimento universitário, o filme se volta para os familiares do protagonista que celebram os esforços do jovem para ampliar o conceito de dignidade humana.
Esse contraponto meramente emocional cria uma obra híbrida entre reportagem de revista eletrônica e um homenagem especial de programas dominicais da TV aberta. Essa complexificação do objeto do documentário tenta seguir um caminho de trazer depoimentos sobre questões sanitárias da aldeia e elementos que o protagonista de “Euller Miller entre Dois Mundos” não abarcam em seu discurso. Contudo, sua pauta é tão bem definida na origem que essas inserções se perdem ao longo da segunda metade, esvaindo rapidamente o que poderia ser uma outra vertente a ser trabalhada.
Fundamental no entendimento das demandas de povos indígenas, o documentário é mais um representante da produção nacional que ousa levar a montanha a Maomé. Um caso exemplar de ocupação de espaço antes limitado às representações limitadas que o cinema purista gostava de criar. Por isso, mesmo com escolhas estilísticas que enfraquecem o eventual poder transformador em larga escala, há na publicização de filmes como “Euller Miller entre Dois Mundos” a romântica esperança de incentivar tanto o respeito ao outro quanto o próprio empoderamento.